Todos os dias no Chile, até agora, são dias de chocolate quente e biscoitos. O céu cinzento teima em não conceder nenhuma abertura ao Sol que brilha, por certo, acima do nível das nuvens. Em maior ou menor intensidade, a chuva faz-nos companhia com uma persistência cavalheiresca. As árvores pingam constantemente do alto das suas frondosas copas, tocando no tecto da carrinha numa melodia irregular.
É tempo de virarmo-mos um pouco mais para dentro. A atmosfera convida ao entorpecimento da introspecção. Maiores camadas de roupa nos separam do mundo exterior. Nasce a vontade ouvir músicas calmas e de melodia sossegada. Observa-se as paisagens. Encontram-se momentos de silêncio, onde dantes o rádio figurava com o seu som estridente. Durante os próximos dias, iríamos visitar duas regiões, que nos fariam também viajar no tempo.

Valdivia é uma pequena cidade portuária. É famosa pela sua feira de Sábado de manhã, junto ao rio, e foi praticamente por esta que nos dirigimos até lá. A dinâmica da feira é igual em todo o mundo, apenas muda o idioma. De resto, há os que berram os preços como quem anuncia o final do mundo, os que são simpáticos e os que parecem fazer o favor de nos atender. Os que têm paciência para as nossas perguntas, os que mesmo depois de pesarem o saco, metem sempre mais uma batata lá dentro e, por fim, os que ridicularizam as nossas tentativas tímidas de regatear. Para além do marisco delicioso e gigante, e as frutas e verduras frescas da época, o que esta feira tem de realmente diferente são os leões marinhos, que se acumulam junto ao gradeamento, petiscando os restos que lhes vão atirando.
Estacionamos junto ao mar, numa praia de pescadores, para almoçar amêijoas do tamanho da palma da mão e um ouriço do mar. De barriga cheia, ali ficamos a digerir com a ajuda da Cola de Mono, enquanto a Levi, de pau na boca, infernizava a vida às poucas pessoas que se faziam passear pelo areal. O Chile é uma lombriga comprida e estreita de largura. Facilmente se viaja da costa para a cordilheira e vice-versa. Costurando o país à medida que se ruma a Norte, na expectativa de dias mais solarengos.
A próxima paragem foi Púcon. A atracção principal: águas termales! Passamos a primeira noite na baía de Villarica, observando a luminosidade da cidade reflectida no lago. No dia seguinte, rumamos então em direcção às tão esperadas termas. O caminho abriu-nos o apetite e a Catarina presenteou-nos com aquele a que posso chamar de O MELHOR risotto de cogumelos que alguma vez já comi. Cheios e satisfeitos, fomos fazer a digestão para as poças de água caliente, onde ficamos até ao anoitecer.

Estas duas paragens fizeram-nos recordar uma outra viagem, que para nós é muito especial, pois foi bastante importante para nos motivar a estar aqui hoje. Há cerca de dois anos, num Setembro chuvoso, fomos até ao Norte de Espanha. Um mês foi o tempo que necessitamos, para chegar até Bilbao e regressar. Na altura, a nave era uma carripana velha e lenta chamada Sputnik. Encantados com a vida de auto-caravana, inspeccionámos cada recanto dos Picos da Europa, levantamos cada pedra do caminho e espreitamos cada praia da costa. É impossível fazermo-lo também com tanta precisão, na escala da viagem que concretizamos agora.

Mudaram-se os tempos, e contradizendo a frase, a vontade foi das poucas coisas que não mudou em nós: Viajar. Hoje temos uma casa melhor, e um objectivo maior. Mas sempre que nos deparamos com uma subida acentuada, a piada ainda sai naturalmente: “Olha se fosse com a Sputnik… não passávamos daqui!”.
8 e 9 de Abril, 2018
Comments