
O Chile é uma lombriga. Um país estreito e tão comprido que parece nunca mais acabar. O seu extremo sul é húmido, frondoso, imensamente verde e abundante em água. Por sua vez, o extremo norte é exageradamente seco e áspero, envolvendo o deserto mais árido do mundo. Esta região já se chamava Antofagasta, quando - há cerca de 150 anos - era ainda Boliviana. Aquando da criação dum imposto por parte do governo da Bolívia, as empresas chilenas que exploravam as escavações e extração de minerais em todos os sectores revoltaram-se e o interesse económico por trás era tanto, que originou um conflito armado - a Guerra do Sal. Chile e Peru combateram o vizinho em comum com sucesso, roubaram-lhe o seu território e negaram-lhe para sempre o acesso ao mar. Ainda hoje, as duas nações disputam pelo território salgado na Corte Internacional da Justiça de Haia, na Holanda.
Poucos anos depois, do lado oposto do país, a Bolívia envolvia-se numa guerra com o Paraguay. O palco dos acontecimentos era a região do Chaco, onde recentemente teria sido descoberto petróleo. Hoje a região é maioritariamente Paraguaya, petróleo não existe e se o houvesse os Menonitas teriam-se encarregado dele. É um pouco o que acontece com o vizinho do outro lado. O investimento brasileiro entrou pelo território Paraguayo a dentro e comprou hectares sem número para produzir soja transgénica, tornando a região na segunda maior exportadora do produto no mundo.
Não foi a primeira vez, que a equipa gaúcha entrou por território alheio cheia de confiança. Mais ou menos dez anos antes da Bolívia e do Chile andarem à estalada por causa do Sal, do Lítio e do acesso ao mar, o Brasil uniu-se à Argentina e ao Uruguay para combater o Paraguay. Esta guerra - chamada Tripla Aliança - só parou quando o inimigo na frente de combate eram já mulheres e crianças. O Paraguay que era então o pais mais desenvolvido e independente da América Latina, viu a sua população masculina reduzida em noventa por cento.
No início da nossa jornada, percorremos pouco mais de 4 mil quilómetros na Argentina e estes não foram suficientes para conhecer o país em toda a sua extensão. No entanto, entre esses milhares de quilómetros um símbolo nunca nos abandonou. À entrada das cidades, onde houvesse um complexo militar ou simplesmente perdido no meio do nada numa estrada onde ninguém quer ficar sem gasolina, uma placa figurava: “As Malvinas são Argentinas”. É uma mentira. As Malvinas pertencem oficialmente ao Reino Unido, embora durante anos nunca tenham sido habitadas por ninguém. E apesar de terem sido invadidas e disputadas pelos Argentinos, devido á sua geografia estratégica para a exploração da pesca e da actividade baleeira, este pequeno arquipélago nunca teve outro dono que não o do seu primeiro dia. O interesse económico é o indicador do caminho, já desde o início do antigo mercantilismo, mas muitas vezes a busca e afirmação dum território enquanto propriedade representa também a posição do Homem na Humanidade. A Argentina perdeu uma guerra, mas nunca perdeu o orgulho. Como resultado, hoje não sabemos se haverá mais cidadãos no Reino Unido que desconhecem que as ilhas Malvinas lhes pertencem ou mais Argentinos que vivem na ignorância de realmente acreditarem que as Malvinas são território nacional.
Por sua vez, o Brasil detém aquela que é a maior floresta selvagem do mundo, e precisamente como todo o mundo sabe, esta é desflorestada há centenas de anos por países estrangeiros, nomeadamente os Estados Unidos, com a finalidade de - entre outras coisas - a obtenção de celulose. Esta não é nenhuma novidade. A História conta-nos que toda a riqueza e matéria prima deste continente nunca lhe pertenceu realmente, senão aqueles que o invadiram, “colonizaram” e negociaram. Foi o que se passou com a devastação da prata em Potosí ou com a do ouro em Minas Gerais, por exemplo. Facilmente percebemos que desde o primeiro saque, que neste continente a ideia de território é algo instável e violenta. A esta relação conflituosa acoplou-se uma outra ideia - a de (in)segurança.
Quando percorríamos o tão frondoso Sul do Chile, não entendíamos como hectares e hectares de terrenos vazios e abandonados eram, todavia, delimitados com cercas de arame farpado. Não nos fazia sentido. O mesmo já tínhamos visto na Argentina e no Uruguay. Hoje sabemos que o arame farpado é um símbolo de duas faces. Pode-se dizer que é o arame farpado que une as duas ideias anteriores - território e (in)segurança. Escrevo este texto em Assuncíon, naquele que é o bairro mais prestigioso da capital, seria uma Boavista ou uma Belém. Os quarteirões são espaçados, as veredas bem tratadas, não há lixo espalhado na rua. É neste ambiente limpo e puro que as casas se acomodam. Pudemos ver de tudo, da arquitectura mais moderna à mais excêntrica, da mais elegante à maior falta de gosto. Todos têm quintal e supõem-se que estarão igual ou melhor tratados que os belos jardins na frente da casa, onde carros novos e escovados esperam que os seus donos tenham vontade de ir dar uma volta à cidade. Esta visão idílica só pode ser espreitada através das grades. Tudo está gradeado. Por entre as árvores de fruto, cresceram muros com arames farpados, que fazem com que todas estas casas - mesmo as mais bonitas - pareçam prisões e não lares felizes.
Há uns dias atrás celebrou-se o convénio do ano: a Bayer comprou a Monsanto. Nos últimos tempos aprendi que a nossa comida deve ser a nossa medicina e que a nossa medicina deve ser o nosso alimento. Esta compra entre multi-nacionais infelizmente é um espelho muito mais capitalista desta minha nova aprendizagem. Assim, segue ganhando vida um dos maiores negócios do mundo, a farMafia. Em El Bolson, no sul da Argentina, tivemos a oportunidade de testemunhar um desses aviões mágicos que voam a baixa altitude espalhando fertilizantes em campos de cultivo gigantes. Os argentinos diziam-nos, como quem cospe para o chão, que o Chile é o quintal dos Estados Unidos. Muitas vezes o território não se disputa fisicamente, senão através do ego. Duma forma geral, nos países que já visitamos, nunca ninguém gosta do país vizinho.
Não muito longe desta cidade perdida no meio da Patagónia existe um lago chamado Escondido. Após um dia de viagem e à falta de melhor opções para dormir, decidimos tentar a nossa sorte junto a esta parcela de água que parecia tão apetecível no mapa. Contudo, para nossa surpresa o acesso foi-nos negado. O lago era afinal um empreendimento privado. Sim, um senhor decidiu comprar um lago para si. Aqui a natureza privatiza-se. O território deixa de ser de todos em prol da utilização e do lucro particular. Neste lago agora fabrica-se electricidade. Alguns foram os pueblos que cruzamos, onde se vivia a luta ambiental e a da privatização. É o caso de Esquel. Fosse em formato de grafiti, cartazes colados em todas as lojas ou em letras esculpidas na colina ao estilo de Hollywod, podia-se ler as mesmas palavras: “No a la mineria!”. As “Golden Corp.” ou ”Mineral State” são nomes genéricos típicos de empresas que representam verdadeiras dores de cabeça para algumas pessoas. A extracção de minerais na América do Sul, desde o início da sua história já devastou terras, matou solos e trabalhadores, fossem eles indígenas ou escravos vindos de África.
Apenas escrevo o que a História já escreveu há muito tempo atrás. Quanto maior a riqueza natural dum território, maior a fortuna do Homem que a explora. Acredito que a ideia de insegurança neste continente nasce com a incerteza de que nada nos pertence garantidamente. Mas por entre a Bolsa, outros valores fazem-se também ouvir. Ao longo da nossa viagem, pessoas que mal nos conhecem passaram-nos a chave de sua casa para a mão, deixaram os seus filhos ao nosso cuidado, depositaram-nos responsabilidades laborais, abordaram-nos na rua e ajudaram-nos sem que nada lhes fosse pedido.
Enfim, foi no território da insegurança, seja por causa do crime ou dos mosquitos fatais, que já sentimos as maiores provas de confiança, amor e esperança.
Comments