A História repete-se. E a nossa repetiu-se também. Bariloche não nos falou ao coração. Ainda demos umas voltas pelas montanhas que circundavam o lago Nahuel Huapi que se estendia até aqui, mas logo decidimos partir. Continuando em direcção ao Sul, não demorou muito para que o plano se modificasse. O Parque Nacional Los Alerces tinha um custo de entrada e optamos por não ficar. É sempre estranho pagar para visitar o que a Natureza ofereceu a todos.
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Acabamos por ir parar a El Bolson, onde já de noite atracamos junto ao Rio Azul, na localidade do Lago Puelo (outra maravilha da Natureza, onde demos meia volta, quando à entrada nos disseram que se pagava 9€ por pessoa para ver o lago). Ali, num solo de calhaus e silvas, ficamos também outros dois maravilhosos dias. É difícil aborrecermo-nos. Para além de ler, comer e passear, também há as lides de casa para fazer. Roupa para lavar e estender, lençóis para arejar, piclkes e outras provisões para armazenar, pão para o lanche, um ou outro toque na decoração e uma nova melhoria na arrumação.
A família representada em formato Playmobil
Viajar ensina a cuidar. Este é outro ensinamento que esta experiência nos ofereceu. É um sonho com que estamos a lidar aqui, uma coisa séria. O coração está a amadurecer, a iniciativa nasce mais forte pela manhã e a atenção no presente atinge novos limites. Sinto-me mais zeloso. Redescubro um novo lugar na nossa pequena família e tento vesti-lo com poupa e circunstância. Quero ser um cuidador.
É importante observar o meu interior. Perguntar-me como me sinto, desejar-me um bom dia e auscultar os meus pensamentos. Partir do coração para os outros orgãos do corpo. Este e a mente partilham a mesma saúde e o mesmo respeito. Desvio a atenção para as costas, continuam a doer, perscruto o sistema nervoso, inspecciono as fezes, observo as mãos, que agora sempre têm pequenas feridas. É bom estar o mais equilibrado possível. No rosto a barba cresce. Nos olhos por vezes um brilho, por vezes cansaço. Nos lábios cada vez mais um sorriso, cada vez menos um cigarro.
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A Catarina no Lago Argentino (um pouco mais a Sul)
A Catarina e eu sempre fomos bons para conversar. Falamos abertamente de tudo e gostamos de tagarelar como canários. Somos a melhor companhia um do outro. Em viagem, algumas coisas são mais intensas. Um espaço não comum aos dois é necessário e justo. Por isso, também há silêncio. Em qualquer uma dessas fases, procuro saber como se sente a minha companheira. Perguntando-lhe ou intuindo-a, tento ler os seus comportamentos ou antever as suas necessidades, com o máximo de perspicácia. Nem sempre é fácil. A sensibilidade escorrega-nos entre as mãos, e desrespeitamo-nos sem que o queiramos. Por vezes, o primeiro obstáculo para os cuidados duma boa relação, somos nós próprios. Como tal, é importante estarmos bem conectados connosco mesmos, para que nos possamos compreender um ao outro e cuidarmo-nos mutuamente.
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A Levi no seu Habitat-Natural
Há que cuidar do cão também. A energia é correspondente à fome e este bicho corre para o que come. É um prazer ver a sua felicidade. A excitação com que cada praia parece a primeira na sua vida ou como cada pedaço de terra é uma nova descoberta entusiasmante. Mas apesar de estar quase sempre de roda no ar, a pequena tripulante de quatro patas também tem os seus momentos. Por vezes, fica mais ansiosa e nervosa, por outras vezes mais desobediente. Há manhãs em que não se mexe, parece que decidiu que para si hoje será Domingo. Há manhãs em que o nosso despertador é a Levi a chorar para a janela. Tudo são sinais. É preciso interpreta-los e cuidar de saber ler o que a nossa amiga nos tenta comunicar.
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A Patassaura a atravessar a Patagónia destemidamente
Com quase 7 mil quilómetros de viagem, a Patassaura está a portar-se muito bem. Tem tratado de ser discreta e claramente não veio para aqui para armar problemas a ninguém. Aprecio esse espirito. Respeito-lhe a idade e a experiência de vida. Tal como o cão, só bebe do melhor, mesmo que seja mais caro. Escuto os seus ruídos em andamento, à espera que o semáforo abra ou nas curvas. Reparo nos que aumentam e nos que se mantêm constantes. Não há nada como abrir o capôt e sentir-me um burro a olhar um palácio. Encaro todas aquelas tubagens, que só aos poucos percebo donde vêem e para onde vão, e com respeito verifico o nível do óleo, água e líquido de travões e direcção Depois ponho as coisas nestes termos, compramos a carrinha mais barata que encontramos no Olx, construímos o seu interior e enviamo-la para o outro lado do mundo, sem nunca termos sequer experimentado alguma coisa.
Há que cuidar. Há que cuidar de mim, da Catarina, da Levi e da nossa casita rodante. Apetece-me abraçar isso tudo e fazê-lo com o maior dos rigores e prazer.
1 e 2 de Março, 2018
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