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Atravessar o sul da Argentina é uma experiência sensorial. Um mundo cinematográfico estende-se para lá do pára-brisas. Estradas foram desenhadas por uma mão gigante, que com uma régua apoiada sob o planisfério, traçou uma recta em direcção ao infinito. Por entre pedras e asfalto, a Patassaura soma quilómetros como se nada fosse. Cada um desses quilómetros, significa o ponto mais a Sul onde alguma vez já tivemos. E assim, seguimos sucessivamente.
A paisagem é árida e o solo bem duro. À medida que avançamos a natureza vai-se despindo. As árvores vêm a sua população quase reduzida a zero. Os pequenos arbustos que sobram, parecem não conseguir evitar o mesmo rumo. O desenho da cordilheira também muda. Os cerros pontiagudos que rasgam o céu, dão agora lugar a montanhas planas. Só o Sol se mantém sempre lá no alto. Intocável. Alguém comentou connosco, há uns dias atrás, que os chineses - creio que o disseram como forma de generalização de orientais - quando visitam a Patagónia, ficam abismados com o céu. Habituados às grandes cidades, onde os cerros são de cimento e têm elevadores e onde o nevoeiro é artificial, a sua boca abre-se de admiração, pois nunca tiveram oportunidade de ver o firmamento com tanta amplitude. Ou com tanta liberdade, pode-se dizer também.
Da mesma forma que os Açores têm mais vacas do que pessoas, por aqui vê-se mais guanacos do que gente. Estes pascácios de cara cómica, alinham-se geometricamente na berma da estrada, e parecem esperar propositadamente os poucos carros que passam. Como aquela velha brincadeira de arriscar a vida a cruzar a linha do comboio, esperam até ao último momento para atravessar a estrada, obrigando-nos a uma travagem repentina. Pela noite, cansados da adrenalina os guanacos retiram-se, e é a vez das lebres brincarem. Talvez pela escuridão ou por falta de talento, os pequenos seres não parecem gozar da mesma sorte, pois no dia seguinte multiplicam-se os cadáveres esborrachados ao longo da estrada.
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Não temos visto muitos viajantes como nós, ou seja, de casa às costas. Os poucos que se cruzaram connosco (um casal inglês e um grupo de amigos franceses) não mostraram muita vontade de partilhar da nossa fogueira ou da nossa garrafa de vinho, respectivamente. O mesmo não se pode dizer dos que trazem a mochila às costas. Ter um carro no Sul da Argentina, é ser a única rapariga da turma. Não é muito fácil conseguir-se boleia por estas bandas. Parte-nos o coração, mas não podemos arriscar a levar mais que uma pessoa e por isso tornamos uma máquina de desfazer sorrisos e olhares esperançosos.
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Entretanto, descobrimos a forma mais eficaz de passear a Levi. Muito simples. Larga-la no meio da estrada e seguir viagem. Feliz e alegre, começa a corrida entre tecnologia e animal. De língua de fora e musculatura saliente, lá vai ela ao lado do carro. Mas tudo que é bom acaba de pressa, é a forma como a vida foi desenhada. Nenhum de nós - Pedro, Catarina ou Levi - lembrou-se do habitual gangue de alpacas na berma da estrada. De forma que a brincadeira acabou numa perseguição por parte da Levi aos pacatos animais de pescoço comprido. No final, estes não ganharam para o susto e a Levi não ganhou para o fôlego. Não se torna a repetir!
Outro elemento da cinematografia da Patagónia é a típica bola de arbusto seco que roda no horizonte, tal e qual como nos filmes. Nunca tínhamos visto este ícone dos Westerns ao vivo. Nem nós, nem a Levi, que distraída a roer um pau, levou com uma destas bolas na cabeça e apanhou um susto bem maior que o dos guanacos. Mas esse momento, infelizmente, não captamos.
22 e 23 de Março, 2018
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