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Espreitando Santiago - e a história - do Chile

Foto do escritor: PéterPéter


Por norma, quanto maior a cidade, maior a dificuldade para encontrar um sítio para estacionar e dormir com o mínimo conforto. No caso de Santiago do Chile, acabámos nas bombas da Shell. Já tinha a informação de antemão que para pernoitar aqui seria necessário pagar (como tudo no Chile!). Assim, dirigi-me ao responsável que era simpático e prestável (como todos no Chile!) e prontamente moveu uns quantos carros para que pudéssemos estacionar no parque cheio.


Agradeci e ao voltar-me quase esbarro num homem alto, com idade para ser meu pai e perfume ao norte da Europa. Sorriu-me e apresentou-se. Era alemão, chamava-se Martin e viajava num jipe Toyota convertido em autocaravana. Expliquei-lhe os termos e condições da Shell, pois não falava espanhol, e viu em mim a última Coca-cola do deserto quando lhe disse que também falava inglês. Estacionamos lado a lado e cada um foi visitar a cidade com a sua patroa, prometendo-se dois dedos de conversa para mais tarde.


Já não estávamos habituados à confusão urbana. Por entre os passeios e praças do centro da cidade, parecíamos o Simba no desfiladeiro. No entanto, não foi preciso andar muitos quarteirões para repararmos na exagerada oferta de livros nas ruas da capital. Desde feiras a barracas de vendas ou pessoas que simplesmente estendem um tapete no chão com livros em cima, os objectos do conhecimento estavam por todo o lado e para todo os gostos. Após uma análise rápida, desfolhando as páginas entre os dedos, percebemos que são falsificações quase perfeitas. Detectamo-lo através dum livro de permacultura que queremos comprar e ali encontramo-lo a metade do preço. Contudo, a falta de qualidade de impressão das ilustrações denunciou o crime.


Depois do jantar encontrei-me com o Martin entre os dois carros. Contou-me que viajava com a sua esposa - Christin -à quase cinco anos. Já tinham percorrido África duma ponta à outra e também costumavam viajar com o seu cão, mas que este morrera de velhinho à pouco tempo. Do outro continente inúmeras foram as histórias que partilhou. Todas tinham as palavras “suborno” , “medo” e “sorte” a certa altura da narrativa. Em nenhuma delas desejei ter estado. Em tom de brincadeira, disse-me que a América do Sul é um passeio de reformados. O Martin e a Christin também começaram em Montevideo e fizeram praticamente o mesmo percurso que nós até aqui. Mas a sua viagem tem sido bem diferente da nossa. Dois exemplos: eles foram até Ushuaia e aí estacionaram a casa durante três semanas para ingressarem numa expedição à Antártida. Agora, também vão em direcção ao Norte para o deserto do Atacama, mas antes visitarão o arquipélago das Galapagos. Assim, eles conhecem regiões e/ou partes do planeta às quais nós não conseguimos ir mesmo estando tão perto, o que faz com que explorem mais profundamente que nós a Natureza e a Geografia dos países. Por outro lado, não falam espanhol nem fazem voluntariado, o que lhes permite aprender e conviver directamente com as pessoas e os hábitos locais. O que também é um conhecimento mais profundo do país. É engraçada este contraste.



Combinámos com o Sam à porta do Museu da Memória, no dia seguinte. O Sam é um inglês castiço que esteve connosco a construir o domo no Uruguai. Passaram-se quatro meses e por coincidência estamos em Santiago nas mesmas datas. O Museu é duro como um murro no estômago, doutra forma não faria jus à história recente do país. Em Pailimay, quando contei à Caro que em Portugal houve uma revolução com cravos em vez de balas, esta não sabia se haveria de rir ou respeitar. Nunca vi um cravo no Chile. Se existissem talvez a ditadura de Pinochet não tivesse derramado tanto sangue. Adultos e Crianças, Homens e Mulheres, muitos morreram nos centros de detenção espalhados pelas várias regiões do país ou desapareceram sem deixar rasto.


Em quase duas décadas de ditadura militar houve muitos episódios especialmente marcantes. Alguns deles podem ser revistos no museu. Entre estes momentos houve um que se espalhou pelo Mundo, ao contrário da maioria que nunca saíram do Chile para os meios de comunicação internacionais. Aquando da sua visita ao país, o Papa João Paulo II discursava em público, recorrendo às palavras de ordem “paz”, “amor”, “união” e “perdão”. Enquanto a sua voz se fazia entoar pelo recinto ampliada pelas colunas, metade da assistência envolvia-se em conflitos com o Carabineros. Pessoas espancavam e eram espancadas ao som das palavras de esperança que desejavam um amanhã melhor.


Sente-se que ainda é tudo muito recente. Acredito que estamos a visitar o Chile numa fase muito bonita do país, pois é como se este estivesse a reflorescer. As pessoas - novos e velhos - estão a recuperar tradições e crenças dos antepassados, coisas que foram censuradas por Pinochet. Os Mapuche, o povo indígena do Chile, tem hoje uma presença muito maior na sociedade, pois durante os anos de ditadura não saíram da cordilheira. Nas zonas rurais facilmente alguém nos fala de espiritualidade e conexão à terra. Está-se a assistir a um movimento de algumas pessoas que estão a ir para o Sul comprar um terreno e construir a sua própria casa.


Para desanuviar um pouco fomos comer ao mercado La Vega, conhecido pelas refeições locais baratas. Enquanto esperávamos que uma mesa vagasse, uma mulher convidou-nos para que nos sentássemos consigo. Recomendou-nos o peixe frito e a cazuela de pollo (frango), especificamente de pechuga (peito), pois tem mais carne que a coxa. Trocamos contactos e histórias. A nossa nova amiga chamava-se Maria, tinha quatro filhos e casou-se há pouco tempo, vestida de vermelho. Ensinou-nos a falar o verdadeiro calão de rua Chileno, onde não se pronuncia o “g”, porque isso é coisa de ricos. Cachay, po?

No final do dia despedimo-nos do Sam. Talvez ainda nos encontremos, pois faz tempo que ele anda às voltas por este continente e pelos vistos ainda está longe de se cansar. Quando chegamos à Shell, o grande jipe autocaravana já não estava ao lado da Patassaura. Experimentei um pequeno sentimento de desilusão, que logo foi substituído pela alegria que me causou a pequena carta que nos deixaram entalada na maçaneta da porta.



No último dia fomos visitar o templo Baha’i, um edifício soberbo cuja luz e silêncio interior reproduzem bastante bem os valores de qualquer religião. À hora de almoço a Catarina fez umas belas favas com ovos escalfados e fizemos um picnic nos jardins do templo - mêmo à tuga! E para não quebrar a paz de espirito partimos antes que começasse o trânsito infernal do final do dia. Santiago é pouco turística, o que é bom, mas por outro lado faz com que não seja fácil visita-la merecidamente, em pouco tempo. Saímos indiferentes à capital deste país, pelo qual estamos apaixonados. Penso que é uma daquelas cidades onde é necessário viver um certo período de tempo para a compreender melhor.


14 a 17 de Maio, 2018

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