Depois de três dias exaustivos de viagem, onde comemos quilómetros como quem come amendoim, finalmente chegamos à última cidadela, Zapala, às portas da Patagónia. Um lugar tão desinteressante como todos os outros que ficaram para trás, desde que saímos de Buenos Aires. Atravessamos o país na sua largura, debaixo dum sol ardente, sem ver uma única paisagem que não fosse uma estrada hipnotizante em direcção ao infinito e terrenos áridos a ladear a mesma. É impressionante como numa extensão tão vasta de território, não se avista um pedaço de solo cultivado.
O último dia da jornada não corria melhor que os outros. O calor insistia em não dar tréguas e a pobre ventoinha de usb, não tem força nem para fazer mover os bigodes da Levi. No carro só se consegue estar com os vidros todos abertos, deixando o vento gritar e perfurar os nossos tímpanos. As cortinas esperneiam-se, as mãos grudam com suor no volante e dificilmente se consegue repousar o braço na janela, sem fazer uma queimadura de primeiro grau no cotovelo.
Mais uma vez, almoçamos qualquer coisa para despachar e seguimos para a estação de serviço para encher o depósito e o bidão de emergência. Com a pressão dos pneus verificada, arrancamos novamente atrasados e novamente chateados com um pormenor qualquer, que tem a magnitude dum vulcão em ebulição, quando estamos com a moral feita num trapo. O final da tarde já se aproximava e contra as nossas expectativas iríamos entrar na Patagónia praticamente de noite.
Cruzamos a ruta 40, deixando para mais tarde o cliché de a percorrer, e seguimos para a entrada do Parque Nacional Lanin. Tínhamos visto que na casa do guarda-parque era possível tomar banho, uma necessidade que tinha sido negligenciada nos últimos dias, assim como era possível pernoitar. Subimos uma pequena estrada de terra batida e descobrimos o primeiro lago de muitos, que iríamos ver nos dias que se seguiriam. A casa do guarda-parque afinal não tinha duche, mas sim um guarda-parque mal encarado, que nos informou que só poderíamos pernoitar numa zona que estava repleta de tendas. O vento ficara frio e cortante, o ambiente estava desconfortável fora e dentro do carro. As coisas continuavam a correr mal. Voltei e perguntei ao homem pouco sorridente, onde iria se seguisse a estrada, falou-me de Junin de Los Andes. Recordei-me que lera descrições bonitas desse local, podia ser a nossa última coca-cola do deserto.
Quando estamos num caco, é sempre difícil escolher entre ficar e esperar que amanhã o dia seja melhor, ou continuar e acreditar que ainda há tempo para melhorar a situação. Procuramos duma forma instintiva responder a esta questão, descobrindo qual é a opção mais inteligente. Não se trata de inteligência, mas sim de percepção. Se continuar for forçar, não resultará, mas se ficar for desistir, tão pouco será melhor. Só temos que nos desligar da negatividade e não encarar o dilema como uma fuga a um problema. Aí, quer fiquemos ou continuemos, terá sido sempre a opção mais natural. Assim, dei pelo meu braço a engatar a primeira e o pé a carregar no acelerador.
Não foi preciso andar muito mais para a Patagónia começar a desenhar-se à nossa frente. Curva após curva, uma paisagem pintada com a luz mais bonita do dia, desenrolava-se por entre vales e montanhas. Dentro do carro o silêncio era ensurdecedor. De repente, já não interessava que a carrinha tivesse suja e desarrumada, os nossos corpos limparam-se, os músculos doridos relaxaram, os olhos de cansaço reanimaram-se e os nossos corações esvaziaram-se de tudo o que é demasiado pequeno para ser grande. Uma emoção enorme preencheu-me.
Parecia que estávamos no cenário pintado à mão do filme “Vale Encantado” e quão fácil era imaginar ali os dinossauros e a sua folha estrela. Todas aquelas fotografias duma paisagem cénica que vimos inúmeras vezes, há muitos meses atrás, enquanto pesquisávamos este destino, eram agora reais. Mais do que isso. Esta nossa aventura era agora real. Subitamente apercebi-me que só agora deixara de sentir que fazer esta viagem já não era um desejo duma coisa distante, da qual não tinha a certeza que fosse mesmo acontecer. Passado pouco mais de um mês, pela primeira vez, caiu-me a ficha, e percebi que estamos com o nosso cão, dentro duma autocaravana, que decidimos construir com as nossas próprias mãos, a viver algo com que sonhamos durante anos.
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A meio do caminho, quando o Sol se escondeu por trás das montanhas, já tínhamos encontrado um canto para dormir à beira rio. No meu interior havia a certeza que algo mudara para sempre em mim. Nessa noite dormimos com calma, Junin ficaria para o dia seguinte.
18 de Fevereiro, 2018
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