14 a 30 de Abril, 2018
Conhecem a música casa no campo da Capicua? Podem ouvir, e à poesia da letra acrescentem o som de conversas e brincadeiras de criança. Assim, imaginam-se em Pailimay.
Foi esse o nosso tempo por cá. Não pudemos transcrever cada dia porque como na música “os dias como os demais, sem serem todos iguais” estão verdes e emaranhados na nossa memória. Mas podemos contar histórias.
Comecemos pelo princípio.
Chegamos Sábado pela manhã e encontramos a Caro no topo do terreno, gostamos imediatamente dela, jovem despachada e à vontade, tratou-nos como velhos amigos. Descemos a íngreme e esburacada ladeira até à eco-aldeia com a certeza de que, sozinhos, não conseguiríamos voltar pelo mesmo caminho. Mas essa história fica prometida para o fim.
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Mostrou-nos os cantos à casa enquanto as crianças estavam na aula de música com a Mariel e o Rodrigo, a outra família permanente na aldeia - das sete iniciais, permanecem apenas duas, viríamos a descobrir. Começamos a preparar o almoço e rapidamente chagaram as crianças mais curiosas com a Levi do que connosco, mas definitivamente empolgadas. A Levi não teve muita sorte, nem se podia acercar da casa familiar pois a Nieves, uma S. Bernardo gigantesca e territorial, deixou bem marcadas as suas regras, sempre reforçadas pela presença do Choco, o seu pequeno guardião preto.
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De volta às crianças, conversamos muito com a Aurora de 13 anos, nossa acompanhante nos cozinhados. Com uma paixão assolapada pelo ballet e o sonho de estudar dança, é a adolescente mais doce e paciente que já conhecemos. Cândida e meiga, toma conta dos três irmãos mais novos com um empenho comovente. Conhecemo-la em todo o seu esplendor no nosso último dia, em cima do palco bailando com um brilho próprio. A seguir, a Violeta. Com dez anos e muita manha, é brincalhona e tem uma imaginação surpreendente. Mas é também tímida e reservada, por isso levou alguns dias a sermos bem-vindos no seu mundo e a ultrapassarmos a barreira da desconfiança. Depois o Orion, com 5 anos e os olhos azuis mais expressivos do planeta, foi o nosso melhor amigo de brincadeiras aleatórias. Também era o que estava na fase mais difícil, além de que noutra vida devia ter sido rei, como dizia a Caro. Foi o mais desafiante. Por fim, a Celeste. Com dois a fazer três, conquistou o nosso coração com o seu sobrolho franzido e temperamento independente e determinado.
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Voltando à história, acabamos por almoçar tarde e num grupo grande, porque à família juntou-se também a Mariel e os seus dois pequenitos, a sua mãe, o Eduardo, outro voluntário Chileno e o Hugo e a Carolinche, um casal amigo que faz parte da comunidade, mas só aparece de vez em quando. Pelas 4h foi tempo de pôr mãos à obra e os três voluntários com o Felipe alcançamos terminar a mescla para o banco da cozinha comunitária e trabalhar um pouco o barro. Apesar de terem sido só três horas de trabalho, a energia do Felipe é contagiante, portanto acabamos de rastos e com as mãos feridas.
O jantar foi engraçado. Por norma janta-se muita levianamente no Chile, é a once, como lhe chamam. Um pãozinho, tomate, palta, ovos e chá. Para nós, esfomeados, foi uma desilusão e uma aprendizagem: nunca mais ir para um voluntariado sem reservas de comida! A verdade é que a habituação é um estilo alimentar distinto é sempre difícil, ainda mais quando acompanhado de trabalho árduo. Por outro lado temos a sensação que aprendemos a comer menos, hábito que estamos a tentar manter.
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No Domingo despertamos com a Tutruca - um instrumento de sopro Mapuche - entoada pelo Felipe na alvorada. Trabalhamos duro até às 3 da tarde, quando as forças já nos faltavam. Mas o esforço foi compensado pela festa da Celeste! Juntaram-se amigos e carregaram-se as mesas do domo comedor de carnes, verduras, saladas e cidras. Além do pastel de cumpleaños e doces adjacentes. Por aí passamos a tarde atordoados de comida e açúcar, mesclados com rápidas e nublosas conversas em chileno cerrado.
Mais dois dias de intenso trabalho no barro a quatro e entretanto o Felipe teve que ir embora, construir um domo no Sul em trabalho, levando com ele o Eduardo que também tinha que voltar ao seu próprio trabalho. Assim de repente a nossa rotina mudou e o trabalho a dois já não tinha tanta piada.
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O Pedro continuou firme nas suas funções, enquanto eu me fui tentando acercar de outras tarefas, como encarregar-me das refeições e do horto. A Caro agradeceu verdadeiramente, pois com quatros crianças para dar atenção, mais as tarefas domésticas, o trabalho de escritório acaba por ficar em atraso. Foi assim que num dos primeiros dias, estávamos as duas sozinhas na horta, aproveitei para nervosamente falar do aporte. Isto porque no primeiro jantar ela tinha comentado que normalmente pedem um aporte voluntário de 3000 pesos por dia, o que para nós é incomportável porque viajamos com um “presupuesto” muito baixinho. Isto foi o que, com a voz mais firme que consegui, lhe expliquei. “Sem problema”, respondeu relaxadamente, “por isso dizemos que é voluntário.” Aliviada, acabei por lhe contar que o Pedro está a gostar tanto de domos que quer abrir uma empresa de construção especializada, quando voltarmos a Portugal. “Ai, sim? Nos dias 13, 14 e 15 de Maio vamos ter uma capacitação teoricó-técnica em construção geodésica, podiam participar em troca dum vídeo.” Com os olhos a brilhar agradeci e transplantei todo o amor e gratidão para as pequenas ervilhas que estávamos a semear. Devem crescer deliciosas!
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O lugar de Pailimay é mágico, encarrapitado num encalhe no cerro, mesmo ao centro do vale, tem um rio pequenino como vizinho. Para o vermos levantamo-nos numa manhã às sete, ainda com escuro, e seguimos um pequeno trilho no escuro por meia-hora, que nos permitiu assistir ao espetáculo luminoso da alba da madrugada. O rio ria-se cristalino do nosso frio, saltitando contente e enérgico entre o leito das pedras. Deixamo-nos envolver pela energia da água e pela serenidade da paisagem, até deixarmos de sentir os ossos. A experiência valeu-nos um valente resfriado curado com uma potente mistura medicinal da Caro: canelo, vira-vidas, caroço de abacate ralado, gengibre e mel da quinta. Até as crianças tinham direito à sua própria água de ervas - ou medicina, como lhe chamavam.
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O restante terreno é bastante poeirento com uma terra fininha que se levanta a cada passada e se entranhou em todo e qualquer buraco da Patassaura e das nossas vias respiratórias. Com uma vegetação típica destes tipos de terrenos, fazia-me lembrar bastante o alentejo e não podia deixar de sorrir sempre que me recordava desta comparação, que tanto irritava o Pedro. Era também o terreno ideia para brincar com os mais pequeninos. Acompanhados do Orion e da Celeste fomos detectives, antropólogos, ninjas, fantasmas, pistoleiros - “Ops! A mãe não gosta desta brincadeiras”, intrépidos explorados e elegantes tomadores de chá. Às vezes também nos zangávamos, eles connosco por não compreenderem o nosso estranho idioma, por se sentirem desconfortáveis na nossa presença ou simplesmente por estarem fartos de nós; e nós com eles por estarmos cansados, sem paciência ou frustrados, mesmo sabendo que não deveríamos transmiti-lo. Mas no fim as coisas sempre ficavam bem e quero acreditar que se vão lembrar um bocadinho de nós!
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A nossa brincadeira mais divertida foi quando ficamos os quatro sozinhos porque a mãe e as irmãs mais velhas tinham descido à cidade. E tivemos a noite toda a jogar ao quarto escuro, até elas chegarem. Sem ninguém chorar ou fazer birra de sono! Foi uma verdadeira vitória.
Este nível de confiança espantou-nos e inspirou-nos. A Caro e o Felipe abriram-nos a porta de sua casa desde o primeiro dia e nunca nos impuseram restrições. Não se fecham as portas dos quartos e éramos mais do que bem vindos a ser os primeiros a acordar, entrar em casa e preparar o pequeno almoço, enquanto todos dormiam ainda. Chegamos também a ficar os dois sozinhos enquanto todos foram às suas aulas de dança - tempo que aproveitamos para ler um dos maravilhosos livros de permacultura da biblioteca. Mas a prova máxima de confiança foi realmente quando ficamos sozinhos com os pequeninos e disso não temos palavras suficientes para agradecer.
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O ritual de cozinhar também era bastante divertido. Com apenas um fogão a lenha, a primeira coisa a fazer pela manhã e antes de qualquer refeição, era acender o fogo. Depois preparávamos a massa para os chapatis e cortávamos a fruta para a salada, no caso do pequeno almoço. Parece simples, mas quando se multiplica o trabalho para sete bocas, cada uma com os seus gostos específicos, complica um pouco mais. Por exemplo, sabiam que a palta (abacate) não se come como fruta no Chile? Que ideia absurda a nossa de mistura-la na salada de frutas! Acharam as crianças.
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O almoço era sempre à volta de verduras, guardadas debaixo da enorme mesa de comer. Muitas vezes tinha a companhia da Celeste nas preparações, que se encarregava de cortar as folhas de alface ou acelga com a sua própria faca! O Orion também ajudava mas era a roubar as cenouras já descascadas (: Aprendemos a tirar a casca da tuna (figo da índia), a fruta espinhosa dum cacto, de faca e garfo, e a fazer ovos mexidos directamente na frigideira, sem misturar muito a gema com a clara. Também nos ensinam que, obviamente, as lentilhas - comida favorita da Celeste - se comem de colher de sopa por causa do molho!
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A meio da primeira semana chegou outro voluntário, o Borja, um espanhol de Alicante. Não nos cruzávamos muito durante o dia, pois ele estava adoptado pela outra família, mas partilhamos serões à volta da fogueira e finais de tarde na cascata.
A Mariel e o Rodrigo, os dois músicos, estão em Pailimay mais por acaso que por fervor, contou-me a Mariel. Ela e o Rodrigo sempre tinham procurado um terreno mais no Sul para viverem os dois, mas depois de conhecerem a Caro e o Felipe e o espaço de Pailimay apaixonaram-se pelo sítio e ficaram. Os seus pequeninos têm os nomes mais bonitos que já ouvi: Amantu, que quer dizer O brilho do Sol, em Mapundungu; e Antil, que na mesma língua significa Reflexo da luz na água. Entretanto em Pailimay têm o sonho de abrir uma escola alternativa e para isso estão a trabalhar. Já têm aulas de música com um projecto financiado. (: Ah! E foram a última família a chegar a Pailimay.
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A História da Caro e do Felipe é um pouco diferente. Antes de Pailimay já tinham estado noutra eco-aldeia, onde tinham uma casa domo construída em espiral com 4 pisos!! Demorou mais de quatros anos a construir e entretanto tiveram um desentendimento com outra família com quem dividiam o espaço. Tão fracturante foi esse problema que decidiram que o melhor seria irem embora! Depois chegaram a Pailimay e assistiram ao crescimento da aldeia quando eram sete famílias em sintonia. Entretanto, por razões distintas, cada uma delas foi indo embora até restarem apenas duas. Algumas pontualmente vêm a Pailimay passar os tempos livres outras nem tanto. Mas a aldeia segue com força e potencial. E quem sabe se em algum tempo não terá outra família residente - a nossa!
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Outra história engraçada destes dias foi quando fomos ao dentista. Desde Portugal, e apesar de ter ido a uma consulta em Buenos Aires, que me foi um dente a mastigar! Por isso quando a Caro nos contou que dia 25 teriam todos dentista grátis e haviam precisamente mais dois lugares, ficamos contentíssimos. Nesse dia acordamos especialmente cedo e conseguimos alimentar e vestir a canalhada em tempo recorde (as manhãs eram realmente alucinantes). Chegamos ao consultório e fomos atendidos por ordem de idades. Os dois mais pequeninos, principalmente o Orion, estavam bastante renitentes mas com ajuda e força das irmãs lá anuíram em deitarem-se na maca branca e assustadora. No final até acharam divertido. Já eu não tive tanta sorte. Apesar de me ter tratado uma cárie, a dor persiste.
Depois desta manhã clinica, almoçamos um tópico charquiquen (estufado de batatas, milho e outros vegetais) num restaurante de San Fernando e dedicamos a tarde a comprar agulhas e fio para aprender a fazer tricot, enquanto os pequenos estavam no parque a brincar. De forma a que agora me entretenho a tricotar umas caneleiras.
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O último fim de semana foi marcado por uma grande minga: ajuntamente de pessoas para realizar um trabalho comunitário voluntário. Veio um grande grupo de sete pessoas e de repente era necessário cozinhar para 22! O primeiro pequeno-almoço ficou a cargo dos 3 voluntários mais antigos, ou seja, eu, o Pedro e o Borja. Assim, às 7 da manhã, bastante ensonados rodopiamos entre quilos de bananas, aveia, chapatis e café! Trabalhamos muito e foi engraçado estar com tantos jovens chilenos, apesar de não conseguir perceber a maioria das conversas!
Neste último fim de semana foi também tempo de irmos assistir ao espectáculo de ballet da Aurora e da Violeta. Depois da semana inteira como assunto principal das conversar, estávamos quase mais excitados do que elas! Assim, depois do almoço tentamos arranjarmos-nos o melhor possível - pois, esqueci-me de contar que só havia água fria ara tomar banho, por isso o duche foi reduzido ao mínimo indispensável! - e saltamos para o jipe. Enquanto as meninas se foram preparar nós, a Caro e os pequenos fomos encher a guata com gelado - é festa ou não é festa?! Às seis entramos no teatro municipal e fomos presenteados com as mais variadas mostras de dança, isto porque este espetáculo era temático do “Dia de Dança”, então todas as escolas de San Fernando participaram. De sevilhanas a cumbias, de street dancing a dança contemporânea, passamos duas horas a ver as mais diversas actuações. Não taça divertidos estavam os pequeninos, que a partir da terceira apresentação começaram a ficar irrequietos. Foi muito engraçado constatar como em todo o lado estas actuações amadoras são parecidas (: Mas divertimo-nos muito e valeu por vermos a Aurora e a Violeta numa faceta até então desconhecida.
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Estamos a chegar ao fim e ainda há a história da peli, mas como já disse, essa fica para o Pedro.
A última noite em Pailimay foi encerrada com a estreia da película na presença de todos os voluntários, residentes e até o Felipe, que voltara nesse dia. Transformado o domo carpa em sala de cinema foi um sucesso internacional. Todos se riram e os actores principais fizeram questão de repetir várias vezes a projecção.
Brindados por uma valente e poderosa lua cheia, acabamos o serão em volta da fogueira contando histórias.
Nós já nostálgicos e um pouco doentes da guata (demasiada farinha) deixamo-nos levar meio flutuantes.
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Mas a nossa passagem por Pailimay não acaba assim. Falta a saída como prometi ao único! Depois de abraços apertados e alguma angústia entalada na garganta, saímos por um caminho alternativo com o Borja e o Francisco (um outro voluntário), armados com serrote e martelo, pois a meio do percurso iria aparecer um portão fechado a cadeado, advertiram-nos. Meu dito, meu feito. Depois de muitas sacudidelas e batidas do fundo da carrinha nos pedregulhos da estrada - Ai, que dor no coração - encontramos o dito portão. Ainda tentamos comunicar com um vizinho mas sem sucesso. Assim os rapazes revezaram-se para dar marretadas no dito cujo e eu já me estava a preparar para fazer um almoço, quando milagrosamente o cadeado se abriu e caiu. Com gritos de triunfo e liberdade - ahaha - lá seguimos caminho em direcção a Valparaíso, deixando o Francisco a meio.
Será alguma metáfora, este desfecho da nossa história em Pailimay?
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