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Desta vez procurámos um voluntariado diferente do registo habitual em permacultura ou comunidades. Descobrimos uma escola em Mancora, uma cidade turística na costa norte do Peru, que necessitava de ajuda para uma turma de crianças com diferentes tipos e graus de deficiência. Sem experiência nenhuma na área, escrevemos para a escola e para nossa surpresa passado uns dias a resposta veio positiva. Mesmo quando no anúncio era pedido que o candidatos tivessem algum tipo de formação em pedagogia, a nossa ajuda foi de imediato aceite e uma vez no local iríamos perceber porquê!
Chegámos pela manhã cedo, cheios de energia para mergulhar de cabeça neste desafio. O Miguel, um encarregado da direcção, apresentou-nos rapidamente as instalações e antes de nos levar à nossa sala de aula teve a atenção de nos introduzir aquilo que seria esperado de nós e o que nos esperaria também.
“A Assíria vai dar-vos ordens o tempo todo; o Moisés não dá ouvidos a ninguém, quando se aproximarem da Zadith tenham cuidado, pois ela dá umas palmadas; há também a Alexandra, nunca ninguém descobriu se ela é surda ou se simplesmente está-se a borrifar para o resto do Mundo. Ah e temos uma menina muito complicada que se chama Angelina Yolit.”
(Silêncio)
Personagens principais entreolham-se. Plano pormenor de gota de suor a cair da testa. Fade in de música inspiracional com violinos. As personagens acenam positivamente com a cabeça e dão um passo em frente. Corta para:
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A Zadit não nos bateu imediatamente, viria apenas a fazê-lo num ensaio duma peça de teatro dias mais tarde, quando em vez de proferir a sua deixa, desferiu uma chapada à padrinho no meio do meu peito.
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A Assíria e o seu pequeno dedo indicador eram de facto dois autênticos generais, uma vez reuniu um grupo que visitava a escola e, sentando-os no chão, à sua frente dava o mote para os demais exercícios físicos que a sua flexibilidade fora de série permitia fazer.
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O Moisés, por sua vez, não mandava em ninguém, mas também ninguém mandava nele, isso era certo. Dos poucos que já sabia escrever, entregava papeis a dizer "Te Amo".
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Depois havia também a Cris Leidi, a nossa maior ajuda. Era ela quem nos orientava a nós novatos. Avisava-nos das manhas do costume, mas que nós desconhecíamos. Aquele faz xixi nas calças, aquela rouba a comida das lancheiras, cuidado alguém fugiu e já vai lá ao fundo, não sei quem está a rasgar as folhas todas, enfim. Obrigado Cris!
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O Lionel era o pai de todos, como dizia a Elizabete, a professora. Pesado e com força, vivia controlando os seus impulsos agressivos. Um futuro matulão que para já tem medo da rebentação das ondas do mar. Uma vez dei-lhe um búzio na praia, adorou o seu som, disse que era igual ao de uma cascata. Dividido entre o encanto pela sua prenda e o controlo de não a atirar ou destruir, acho que aquela manhã acabou por ser de maior sofrimento que alegria para o pequeno grande rapaz. Pobre Lionel, a dez minutos de irmos embora não resistiu e lá voou o búzio pelo ar!
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Por sua vez o Matias era delicado. Tinha um olhar de beber que observa e absorve o Mundo. Por vezes, ria-se e ria-se ria-se e ninguém (se calhar nem ele mesmo) sabia porquê. Adorava bananas e era capaz de detectar uma dentro duma mochila a vários metros de distância. Impressionante!
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A Angelina Yoli era a mulher aranha, agarrava a nossa mão ou a roupa e não largava mais, a não ser para mandar beijinhos pelo ar com a palma da mesma.
Por fim, o Dayron e o Lucas, os dois miúdos que ficaram especificamente ao nosso encargo. Os dois eram o amor em pessoa. O Dayron era uma pequena tartaruga desdentada momentaneamente. Tinha um sorriso de orelha a orelha e os olhos rasgados. Todos os dias chegava à escola com o cabelo impecavelmente penteado com gel, mas o efeito do mesmo não durava muito, pois sendo super preguiçoso, o Dayron adorava simplesmente deitar-se no chão e aí viver. O Lucas era mais reguila e energético. As suas mãos afunilavam em cinco dedos esguios, da sua barriga já saia uma pancinha de cerveja e a sua cabeça por vezes abanava ao som de um heavy metal que só ele ouvia (quem sabe a Alexandra também!). Embora os dois não falassem, não tinham problemas nenhuns em se fazerem comunicar.
Durante este mês deveríamos trabalhar com eles tarefas de motricidade fina, estimulação cognitiva e desenvolvimento cinestético. Isto passa por actividades como traçar uma linha recta, seja no papel ou a caminhar, fazer actividades com pinças para desenvolver a capacidade de manuseamento, entornar líquidos entre vários recipientes, jogos de encaixe e, num nível mais avançado, tentar fazê-los escrever o seu nome. No início, super entusiasmados, pesquisámos uma série de actividades novas para aplicar com eles, mas com o tempo fomos percebendo que naquele curto espaço de tempo não veríamos grandes desenvolvimentos. A rotina das próprias aulas não era propicia a um ambiente de concentração, não havia muita organização nem tão pouco as coisas eram muito rotineiras, nunca se sabia o que iria passar nesse dia. E se para uma criança dita normal esse ambiente caótico já é algo negativo, nas nossas crianças tornava impossível qualquer coisa que não fosse brincar por brincar. Pelo menos, sem qualquer tipo de formação da nossa parte, não conseguíamos com eles mais do que isso. O Dayron ainda gostava de trabalhar e pedia para realizar algumas das tarefas, mas o rebelde do Lucas preferia brincar às mercearias e vender tudo que tivesse à mão por 1 sole!
Ao longo do mês a nossa relação com as crianças foi-se desenvolvendo, ficamos cada vez mais amigos e como todos os amigos conhecíamo-nos cada vez melhor. O Moisés começou a revelar-se um pré-adolescente mulherengo, que gostava de boxe e que tinha um fascínio pela minha barba e tatuagens. No último dia, tatuamos-lhe uma âncora e um coração com cupido a dizer C.L., as inicias da Cris Leidi, a sua namorada preferida com quem se dividia entre abraços e porrada. A Zadith parecia viver num mundo paralelo onde a toda a hora resolvia problemas de física quântica como se fosse sopa de letras. Sempre um pouco à parte dos demais, olhava o céu profundamente e passava a mão pelo queixo. Talvez viesse daí o seu fascínio pelas micas de plástico, não podia ver uma! Agarrava-se a ela e fazia-a desaparecer na sua mochila! A Angelina Yolit era a mais imprevisível. A cada movimento seu nunca sabíamos se nos ia cuspir ou abraçar com muita força.
Cada criança revelou a sua magia própria. Com a magia de umas eu envolvi-me mais, com a de outros não tanto. Mas com maior ou menor proximidade todos me afectaram bastante. Estar a falar sobre as consequências da influencia de cada criança na minha vida, seria um disparate a esta altura do campeonato. Preciso de muito mais tempo para absorver as aprendizagens com que cada um me regalou!
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