A educadora responsável era a Elizabete e tinha o apoio da Maricarmen, uma auxiliar, e da Myrna, uma voluntária alemã que já há vários meses se encontrava na escola. As três nos receberam muito bem, abrindo espaço para a nossa inexperiência e sem qualquer tipo de julgamento sobre os nosso métodos amadores, para não dizer nada ortodoxos, pelo menos por vezes.
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A segunda-feira começava com uma reunião no pátio da escola com todas as turmas. Aí rezava-se uma oração e depois do hino do Peru e de Mancora, erguia-se a bandeira. Depois era tempo para um discurso do director. Sempre falava no valor da profissão do professor e na importância do futuro das crianças peruanas. Voltava ao passado referindo a independência do país e saltava para o futuro. Como gostava de dizer, “se um engenheiro erra, cai um edifício, mas se um professor erra, cai toda uma geração!”.
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De volta à sala, era tempo da assistência. Aqui cantavam os dias da semana e os meses do ano. O Lionel e a Cris Leide eram exímios nas canções e a adivinhar o dia em que estávamos. Como dizia uma das músicas: são 7 dias, 5 na na escola e 2 em casa. A próxima etapa era o trabalho com as crianças. Eu, a Catarina, o Dayron e o Lucas saltávamos para a uma outra sala e aí tentávamos desenvolver as atividades mais lúdicas. Havia dias em que estavam mais concentrados e dias em que era a pura anarquia. Principalmente à segunda-feira, regra geral todas as crianças vinham demasiado excitadas. A meio da manhã as barrigas e as mais diversas vozes começavam a reclamar da fome.
A hora do lanche era o caos. Sentados à volta das mesas as crianças conseguiam entornar tudo por todo o lado, uns roubavam a comida dos outros, alguns não queriam a sua própria comida e convidavam toda a gente a comer da sua, como era o caso oda Assíria. Outros, como o Lucas, preferiam morrer engasgados a partilhar um pouco do seu iogurte com quem fosse. No final, os beiços ficavam sujos das mais diversas cores, as mãos idem aspas, as mesas pegajosas e o chão cheio de detritos. Seguia-se o momento da cascas. Normalmente com o Lucas, o Dayron, a Cris Leidi ou o Lionel, recolhíamos o lixo orgânico das outras turmas e íamos coloca-lo ao composto da escola.
O resto da manhã era destinado a actividades colectivas, fosse dentro da sala ou no exterior. Faziámos dinâmicas de grupo com o objectivo de os pôr a exercitar a sua flexibilidade e destreza. Normalmente era a Myrna, a mais experiente, que guiava os mais diversos jogos e prendia a atenção das crianças.
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Supostamente esta era a rotina de todos os dias. Mas por vezes simplesmente nada decorria assim. Ás vezes o lanche era quase no final da manhã, outras vezes o tempo de trabalho lúdico não existia. Algumas manhãs eram sem regras nem momentos específicos para nada com cada criança simplesmente à sua mercê. Resultado: o pânico.
Mas nem tudo na desordem era mau. Uma série de iniciativas chamou a nossa atenção. Todas as quartas de manhã eram passadas na praia a brincar. Apesar de toda a logística ser um pouco confusa e irmos todos divididos entre tuktuks aos saltos pela avenida fora, esta actividade era vital para o grupo. O Lucas era o mais histérico sempre, mas chegando à praia encolhia-se e tinha medo de adentrar no mar. A Assíria e a Cris Leidi mergulhavam na arrebentação comendo areia a manhã toda. O Moisés era o que mais adorava as ondas. Chegou até a subir para uma prancha de surf. O grande Lionel preferia manter o pés fora da água e fazer castelos comigo, perguntando -me se o nosso castelo resistiria a qualquer tipo de ocorrência: “E terramotos? E o vento? E se vem o mar? E se há um furacão? E se alguém pisa? E se passa um cão por cima? E se vem uma mota?” Lá lhe ia mentindo a dizer que o raio do castelo resistia a tudo. Com todas as muralhas erguidas, desviei-me e comecei a fazer a estrada que levaria ao portão, quando olhei para trás uma pedra gigante tinha desfeito o castelo e triste o Lionel disse-me: “oh, não resistiu a esta pedra”. E zangado o Pedro disse para si mesmo: “Nunca mintas, Pedro!”
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Às quintas de manhã havia sempre um pequeno atelier de pastelaria. O Guilhermo um chef vinha de propósito e as crianças ajudavam-no a amassar a massa para fazer ou pães ou bolo para vender à porta da escola na hora do almoço. A iniciativa tinha sucesso comercial e para além de ser um diversão para a turma, à maioria fazia-lhes bem o exercício de amassar a massa por causa da motricidade. Por sua vez, para fechar a semana, todas as sextas havia apresentações. Fossem teatros, músicas ou outras actividades, a cada semana cabia a uma turma diferente apresentar algo sobre um tema em especifico. Nós apanhamos um teatro sobre amabilidade, um teatro sobre a vida dos campesinos na montanha, a comemoração do dia do pai e a comemoração do dia dos professores (que coincidiu com o nosso último dia na escola).
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A única coisa que não se alterava na rotina desta crianças era a hora de ir embora. Por volta do meio dia e meia os pais começavam a chegar e tenho a confessar que para mim era o momento mais triste do dia. Não porque os diabinhos iam embora, não. Gostava muito deles mas depois de 4 horas intensas também precisava de descansar. Ficava triste pois, regra geral, não exista empatia nenhuma por parte dos pais em relação à escola, aos professores e muitas vezes aos próprios filhos. Alguns chegavam sempre de cara sisuda, pegavam a sua criança e nem a olhavam. Alguns nem se aproximavam da sala e apenas berravam o nome da criança, e esta ia a a correr de braços abertos para um abraço que muitas vezes não existia. Pareciam fazer o frete de pôr e ir buscar os filhos a uma escola, que apesar de alguma desordem, de tudo faz e muito inventa para que estas crianças com necessidades especiais possam ter uma qualidade de vida melhor. Na verdade é um pouco revoltante, assistir como nós vimos em alguns casos, que a primeira dificuldade destas e outras crianças ditas normais, muitas vezes é a sua própria casa, ou seja, o ambiente que as rodeia e onde crescem. É muito difícil romper esta esfera domiciliar onde os pais não querem saber do melhor para os seus próprios filhos.
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E assim passavam as nossas manhas. Uma montanha russa de sentimentos. Por vezes, mantínhamos a calma, outras vezes desatávamos ao berros. Por vezes abraçávamos, por vezes controlávamo-nos para não bater. Ziguezagueando entre distintos sentimentos, esta experiência fez-nos debruçar tanto para as dificuldades exteriores como as interiores. Estamos muito agradecidos por cada dia na companhia destas almas boas, que o que têm de mais especial é a sua presença.
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