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Vixe, Maria!

Foto do escritor: PéterPéter

Atualizado: 1 de abr. de 2019



Não nos sobrou muito tempo para explorar Minas Gerais como gostávamos de o ter feito. Já tínhamos outro voluntariado marcado em Itacaré na Bahia e os dias de viajem estavam contados para lá chegar. Para além disso, aparentemente este voluntariado seria aquilo que à muito procurávamos, uma ecovila “de verdade”. Isto é, não um casal que tem um projecto e precisa de ajuda. Mas sim, um espaço com várias famílias e, mais interessante, a presença de crianças. Ou seja, diferentes processos de educação. Tentamos não criar expectativas, mas tínhamos alguma ansiedade em chegar e conhecer. De forma, que o pé pressionava sozinho com mais força no acelerador.


Já de noite, estávamos procurando um lugar sossegado e de preferência plano para dormir. Não estava muito fácil, pois as únicas oportunidades de estacionamento ficavam em cima da faixa de rodagem, e não apresentavam muita segurança. Uma pessoa acaba por adormecer sempre com a ideia que pode levar com um carro bêbado em cima, e por certo, não vai ter sonhos agradáveis. Acabamos por perguntar num restaurante se poderíamos dormir no seu parque de estacionamento, não era muito plano, mas sempre ficávamos mais descansados. Procurei o dono, um homem com ar de poucas falas e muita barriga. Disse-me sem grande empatia que não havia problema, notoriamente fazia-me um favor. Foi o que pensei. Começamos a fazer o jantar. Para aproveitar o bom tempo, montamos a mesa e as cadeiras fora e aí ficamos. No final da refeição, o dono apareceu. Começou a meter conversa. Já tinha viajado também, mas de moto. Trocamos impressões das vidas de cada um, perguntamos se queria uma cachaça e este não aceitou. Disse-nos para esperar um pouco e voltou com duas garrafas na mão. Ofereceu-nos duas garrafas de cachaça da produção da sua própria quinta. Uma cachaça pura e outra “Gabriela” (com cravo e canela).




A partir daí a conversa aproximou-nos mais. Clayton chamou Rita, a sua mulher, e apresentou-nos. Esta era uma mineira de gema, dizendo “Vixe Maria!” a cada início e final duma frase, fazia-nos lembrar as personagens caracterizadas da novela “Rei do Gado” da globo, uma pérola que ficou na reminiscência das nossas memórias de infância. Juntos, os quatro, ali ficamos mais um bom pedaço a falar sobre Brasil, Portugal e as diferenças e semelhanças entre ambos. No final, como duas avós teimosas, propuseram-nos dormir em sua casa, e não aceitaram um “não” de cortesia como resposta. Então, “obrigados” pela simpatia e boa vontade dos nossos anfitriões lá preparamos a mudança de tecto temporária. Verdade seja dita, já precisávamos dum bom banho e talvez isso se sentisse… literalmente.


Já em casa o serão prolongou-se em frente à televisão, de copo de cachaça na mão, eu e o Clay ficamos a assistir às meias-finais da Copa dos Libertadores. A noite foi calma e tranquila, numa cama maior que o normal. Não tive que entalar o pés entre o colchão e a mala do carro, não disputamos os lençóis, nem a Catarina me deu uma cotovelada a mudar de posição. Acordamos leves e rejuvenescidos com um café da manhã bem simpático à nossa espera. Bastante agradecidos e de conversa em dia, despedimo-nos do casal, que ainda insistiu para que ficássemos mais um dia. Saímos de casa com o coração cheio e um alento bem maior para voltar à estrada.





Continuamos a cruzar o interior de Minas. À medida que penetrávamos nas povoações mais pequenas, maior era o número de carros e varandas com bandeiras e cartazes Bolsonaristas. Notava-se uma grande diferença face ao circuito mais cultural que, de alguma forma, frequentávamos no Rio, onde a presença de Haddad parecia maior. A noite pôs-se e ainda não tínhamos encontrado um lugar para dormir. Estávamos num pequeno povoado, perdido no meio do nada, chamado Divinólandia. Sim, um desses nomes engraçados que se consegue encontrar pelo Brasil fora. Concentrados tentando procurar um canto aparentemente sossegado, fomos surpreendidos por uma cabeça que quase se enfiou pelo carro a dentro, em andamento. Um homem a pedalar em esforço, à velocidade do carro, perguntava se éramos portugueses. Meios atordoados respondemos que sim. De imediato, o homem “mandou-nos” dar a volta e que o seguíssemos, iríamos dormir em sua casa. Trocamos um olhar embasbacado com tal determinação daquele desconhecido. Anuímos em aceitar a proposta e, como nos tinha dito, demos meia volta e seguimos o homem na bicicleta, atravessando o povoado. Páramos num portão no cimo duma colina. Recebeu-nos, apresentando-se como Édson. Encaminhou-nos até à entrada de sua casa, onde aos gritos chamou a mulher, pedindo-lhe para que adivinhasse quem ele tinha encontrado. O seu entusiasmo era tanto quanto a confusão que nos ia na cabeça. A segurança daquele homem em nos levar para sua casa era tanta, que parecia que nos conhecia. A sua mulher, também ela sem perceber nada do que se passava, obviamente não adivinhava quem nós éramos. Por isso, decidiu perguntar-lhe directamente: Quem são? Ao que o super excitado Édson respondeu: Não sei! Mas são portugueses, vão ficar cá a dormir hoje!”. E assim foi.



Depois de tomar um duche quente e trocarmos de roupa, sentamo-nos à mesa e as peças do puzzle começaram a fazer sentido. O Édson e a sua família tinham sido emigrantes em Portugal. Moraram e trabalharam na zona de Vila Franca de Xira e, como o próprio disse, receber-nos era uma dádiva. Uma oportunidade para, de alguma forma, retribuir a Portugal a forma como os portugueses o tinham recebido aí. Contaram-nos como foi o processo, toda a mudança, sobre onde trabalharam e as pessoas que os ajudaram. Em tom de brincadeira, confessaram que uma das maiores dificuldades que encontraram foi “que o feijão que um português come num ano, é o que um brasileiro come num dia”. Hoje, em Divinolândia, têm uma pequena mercearia. Aí foram buscar as iguarias que tinham mais à mão para nos oferecer. “Aceitam vinho ? Não se compara ao de Portugal, mas…”; “Querem queijo? Não se compara ao de Portugal, mas…”; “Também há um doce, se quiserem provar! Não se compara ao de Portugal, mas…” Assim iam oferecendo o que tinham. Segundo o que nos contaram, foi com o dinheiro que juntaram em Portugal que construíram a sua casa actual e uma vida mais confortável. Paralelamente ao trabalho na mercearia, o Édson era um excelente marceneiro, mostrou-nos os carros que fazia ao mais ínfimo pormenor. Neste momento, tinha em mãos um plano de fazer levantar uma pequena aeronave construída pelas suas próprias mãos. De um engenhocas tratava-se., portanto.


Ainda sob o clima das eleições, fazia apenas uma semana que Bolsonaro fora eleito. E sob a perspectiva de que esse foi um momento triste da história brasileira e mundial, digamos que nos tínhamos enfiado na boca do lobo. Já tínhamos reparado na bandeira pousada junto a uma tralha na garagem, mas era sobretudo no discurso de Édson que as provas se tornavam evidentes. Se vínhamos dum ambiente de média classe cultural, onde a associação de que um votante de Bolsonaro era por consequência um fascista, naquela casa o panorama mudou para nós. Apesar do bom momento em Portugal, notava-se claramente que a família, hoje, não sobrevivia com tanta facilidade. Do recanto da sua humildade, Édson parecia crer em Bolsonaro como uma beata em Deus, ou melhor, como uma criança no Super-Homem. Para ele Bolsonaro, não era a imagem das barbaridades que reproduzia, apelando à violência, racismo e outro sem fim de ideias não progressistas, mas sim a imagem, simplesmente, da esperança. A esperança que por mudar a cara no poder, tudo ia melhorar. Uma fé inabalável sem nenhum compromisso político, social e, diga-se, nem mesmo racional. Não se tratava de “concordar” com Bolsonaro. Não se tratava de se “identificar” com o Bolsonaro. Não se tratava de ter uma estratégia qualquer em votar no Bolsonaro. O seu voto foi pura e simplesmente por acreditar numa ideia virtual que por acaso tinha a cara do Bolsonaro. Não temos muita percepção de como as eleições foram observadas por Portugal ou pelo resto do mundo. Mas, estando no Brasil, tornou-se evidente que não se tratou duma vitória do Bolsonaro, mas sim duma derrota do PT. Édson não nos pareceu nem de longe um fascista. Os seus argumentos políticos eram “reais”. E, por sinal, bem palpáveis. Tratou de nos passar todos para as mãos: as conta da luz, do gás, o aumento da água, o imposto do carro, talões das compras e as suas folhas de cálculo verdadeiras, onde por linhas tortas fazia literalmente contas à vida.



Na manhã seguinte, partimos. Mais uma vez saímos de casa com o coração cheio e um alento bem maior para voltar à estrada. Seria mais um dia de isso mesmo, estrada. Brasil gigante de quilómetros sem fim. Nessa noite, não fomos acolhidos por ninguém. Dormimos, sim, em São Mateus, a primeira praia para quem volta para o litoral e um concelho de Édson para visitarmos. Finalmente, no dia seguinte, chegaríamos a Itacaré.

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