top of page

Vallegrande foi causa, Guadalupe foi efeito.

Foto do escritor: PéterPéter


Chegámos a Vallegrande na véspera do Carnaval. Em Santa Cruz várias pessoas nos disseram que nesta pequena vila a tradição do Carnaval era bastante forte. A coincidência que guiou essas pessoas até nós e o seu entusiasmo a falar da festividade em Vallegrande foi tão forte, que decidimos ir conhecer. Para nossa surpresa, a aquando da chegada não encontrámos um cenário de ruas cortas nem nenhum tipo de preparação. Parecia que nada iria acontecer ali. Começámos a duvidar se nos enganarmos na data do Carnaval, mas não era o caso. Demos uma volta pela vila, comemos qualquer coisa barata no mercado e fomos dormir desconfiados com a a falta de movimento local. Dormimos na praça central e no dia seguinte, quando acordamos as preparações já tinham madrugado. Na praça as vendedoras armavam as suas tendas, de um camião descarregava-se a estrutra do palco, a música já se fazia ouvir, e no meio das preparações as crianças ajudavam em todas as tarefas, mesmo nas mais pesadas, como de resto é frequente ver na Bolívia - crianças a trabalhar.


No posto de turismo informaram-nos que em Guadalupe, uma pequena aldeia a cerca de 10km, iria decorrer nessa manhã uma feira de produtos locais. Entregámos Vallegrande aos seus preparativos e dirigimo-nos para Guadalupe. Quando chegámos a feira já tinha começado. na praça central vendia-se de tudo: a comida do costume, biscoitos, pão, fruta (principalmente as maçãs locais), sumos e os tradicionais licores doces da região. No coreto, a alma carismática, que por cliché toda a aldeia tem, anunciava os mais diversos palestrantes que orgulhosamente subiam ao palco improvisado e teciam os mais bonitos discursos de homenagem, agradecimento e louvor à aldeia que os viu nascer e crescer. o nome de todos sempre fazia-se acompanhar por um título: o engenheiro, a licenciada, o ilustre, o doutor; todos filhos bem sucedidos de Guadalupe. Por entre as suas palavras gratificavam a virgem de Guadalupe, a recordavam e importância histórica da ladeia ou o facto de há pouco tempo ter sido alcatroada a estrada que chega até à aldeia. Não deixámos de reparar que por entre os elogios e as palavras emocionantes, faziam-se repetir discretamente os pedidos de moderação e cautela em relação ao álcool. Uma vez que eram nove da manhã e não nove da noite, achámos um pouco estranho. Mas de facto a amanhã foi avançando e rapidamente, por entre as demonstrações ds tradições locais, lá fomos percebendo que algumas pessoas já estavam bem alegres.




Já depois do almoço, decidimos voltar a Vallegrande para averiguar o que se passava por lá. Quando atravessávamos a praça em direcção ao carro, de repente fui agarrado pelo braço e em parte abraçado por dois homens. Fizeram-me sentar na sua tribuna e passaram-me um copo para a mão. Provei. Era uma aguardente suave e, por sinal, saborosa. Agradeci e pousei o copo na mesa. Tornaram a pegar no copo, cada um deu um gole e passara-mo de novo para a mão.


Entendi de imediato, eu tinha que beber! Tornei a pousar o copo e a agradecer. E, de novo, o mesmo ritual repetiu-se. Os homens não falavam muito, mas sorriam-me a toda a hora e com um toque de cotovelo indicavam-se ser desnecessário estar sempre a agradecer. Com este episódio acabei por perder a Catarina de vista. Procurando-a com o olhar, fui dar com ela do outro lado da praça sentada numa mesa com outras mulheres a conversar. A certa altura um levantou-se, disse que ia para Vallegrande a pé e puxou-me para ir com ele. Sem me dar hipótese de falar, arrastou-me pela praça enquanto se ria. Acabámos por não ir muito longe. Na próxima esquina estava um amigo seu e sentado-nos os três à conversa, partilhando a garrafa de aguardente do amigo. Quando essa mesma garrafa acabou, os dois amigos puseram uma cara de fim de festa. Mas rapidamente o dono da garrafa ganhou um grande sorriso na cara, como se dantes tivesse fingido a sua tristeza e, sacando duma outra garrafa do bolso interior do casaco, disse “Não é a mesma coisa, mas também vai!”. Foi quando eu reparei que a nova garrafa era, na verdade, uma garrafa de álcool etílico. Decidi que aquela era a minha deixa e despedi-me dos dois velhos amigos.



A praça já estava quase vazia e foi fácil encontrar a Catarina que estava à conversa com um grupo de pessoas. Apresentou-me a Dueña Lourdes e o seu marido Don Rudolfo, a alma carismática que apresentava os palestrantes no coreto. Rapidamente nos convidaram para nos juntarmos a eles e aos seus familiares e fomos para a sua casa provar os licores caseiros que o casal produzia. Sentados em roda na sala, os licores multiplicavam-se e as gargalhadas também.


Nessa mesma tarde, em Vallegrande aconteceria o desfile dos alunos da escola onde trabalha a Dª Lourdes em Guadalupe. Apanhámos boleia com o camião de carga que os levaria a todos e entre cânticos, risadas e namoros adolescentes lá fomos nós com os cabelos ao vento. Já em Vallegrande, separamo-nos do grupo e fomos assistir aos desfiles das comparsas juvenis. Obviamente, não se tratava do Carnaval carioca, mas em cima dos seus carros alegóricos bizarros, as rainhas adolescentes esforçavam-se ao máximo para conquistar a empatia do público que se fazia dividir dos dois lados da avenida principal. Da fila de cadeiras que se estendiam passeio fora, acabámos por alugar duas que pro acaso ficavam debaixo dum grafite que dizia “Pénis”. Mesmo no meio de toda a confusão, uma vez por outra, alguém passava ao longe e reparávamos nas pessoas a apontar para nós rindo-se maritalmente. Ao final da tarde, reencontramos o grupo e voltamos juntos para Guadalupe. Estafados, tivemos tempo apenas de entrar no carro e adormecer em dois segundos.



No dia seguinte acordámos cedo, mas já a festa e os licores haviam começado. Na esquina em frente à casa da Dª Lourdes e de Don Rudolfo, uma camião com umas colunas gigantes dava vida a um pequeno baile. Don Rudolfo agarrou-se à Catarina no seu jeito cómico de ser. E Dª Lourdes tentou fazer o mesmo comigo, mas perdeu o entusiasmo tal a rigidez dos meus passos. Finalmente, percebemos como é que a dinâmica funcionava. Alguém com uma garrafa e um copo convidava outra pessoa a beber. Antes de servir essa pessoa, servia um copo para si. A pessoa convidada antes de beber, deveria escolher uma terceira pessoa para ser convidada a beber a seguir. Aí, o dono da garrafa tornava a beber um copo e só aí servia a terceira pessoa, que por sua vez também a escolhia uma quarta pessoa para ser convidada. E assim consecutivamente. Neste ritmo o copo, que era sempre o mesmo, durava para sempre, mas por sua vez as garrafas acabavam em dois minutos. Ao fim não de dois, mas sim de vinte minutos já estávamos os dois bêbados e com maior disposição para trazer alegria ao baile.



Entretanto, a hora de almoço chegou mas ninguém parecia preocupado em comer, somente em continuar a beber. Quando meios trôpegos íamos procurar um lugar para comer, o casal nosso anfitrião enfiou-nos dentro do seu carro mais a mãe de Don Rudolfo, uma senhora idosa. Iríamos até uma festa de anos de um amigo. Lá, sim, comemos e continuamos a beber. A certa altura, Don Rudolfo e DªLourdes lá devem ter achado que a coisa ficou aborrecido e tornaram a enfiar-nos no seu carro, mas desta vez esqueceram-se da mãe de Don Rudolfo, que ficou sozinha lá na festa. Fomos até outro lado da vila. o mesmo camião de manhã, agora encontrava-se ali tendo levado consigo as pessoas. Desta vez, o concerto era ao vivo e os ânimos já iam muito mais avançados. Até ao anoitecer dançamos e bebemos. A dinâmica não é como em Portugal, que a festa avança noite dentro. Às nove da noite já a vila estava muito vazia. As pessoas madrugam no dia seguinte e começam a festa bem pela manhã. E essa foi precisamente a nossa rotina nos dias seguintes. Raptados por aquela família amorosa, fizeram-nos beber todos os dias desde manhã, mesmo que disséssemos que ainda era cedo para nós.



Ao quarto dia, quando o sol espreitou pela montanha, as celebrações já tinham acalmado. A aldeia estava mais calma e na praça já só figurava o cartaz esquecido que anunciara a feira do início. Foi tempo de realmente conhecer melhor o nosso casal anfitrião. Os seus filhos que tinham vindo passar o Carnaval à terra, voltaram para as suas cidades, a família despertou um pouco mais e a casa esvaziou-se. Com tristeza Don Rudolfo contava-nos que infelizmente aquele cenário era o habitual, ter a casa vazia. Em anos, notava-se alguma solidão. Sentados os quatro à mesa, falaram-nos sobre as suas vidas. Como se conheceram, a história de cada filho e como hoje a mãe de Don Rudolfo vive com eles por já não ter capacidade de viver sozinha. Falaram-nos também da Bolívia, do percurso do país, do presidente Evo Morales e, sobretudo, do passado. Com grande nostalgia Don Rudolfo recordava o seu cargo de politico local. Em cima da mesa abriu um álbum de fotografias, e mostrou-nos os seus tempos áureos com imagens dos seus discursos, das suas reuniões com os campesinos, sempre de forma muito vaidosa. Como que por ciúmes, Dª Lourdes foi buscar um outro álbum onde só havia fotografias suas de quando era mais nova. Disputando um pouco a nossa atenção, o casal exibia o álbum que cada um tinha feito sobre si mesmo exclusivamente. Eram de facto muito divertidos e cheios de pequenas surpresas engraçadas, mas nessa manhã revelaram-se também um casal muito emocional e nostálgico.


Despedimo-nos emocionados e ressacados com tudo o que acontecera nos três dias anteriores. Don Rudolfo ainda nos ofereceu uma revista, onde ele tinha feito parte integrante da edição, sobre a aldeia de Guadalupe. Em troca demos-lhes um dos nossos pequenos postais que soube muito a pouco face ao que este casal nos ofereceu.


Obrigado Don Rudolfo e Dª Lourdes,

Talvez nunca voltemos, ao contrário da expectativa com que vocês ficaram,

Mas para sempre estarão no nosso coração, sem dúvida.

Comments


bottom of page