De Sucre para Potosi há uma subida imensa, em apenas cerca de 400 metros subimos quase 2 quilómetros de altitude. A subida para além de íngreme é feita de curvas apertadas que nos obrigam a reduzir a caixa até à primeira velocidade. A partir daí o carro entra em esforço e recomeçaram os problemas da água. Encostámos para averiguar se tudo estaria bem, uma vez que já não se pode confiar no sensor da temperatura, e, para nosso azar, não estava. Apesar de não ter chegado a deitar água por fora, páramos mesmo a tempo da água estar no ponto perfeito para fazer um chá. Ficámos uma hora à espera na berma da estrada, à espera que o sistema esfriasse e retomamos com cautela. Uma prova de fogo para o motor do nosso carro e para o nosso poder de aceitação da frustração.
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Até Potosi o episódio não se repetiu. Entrámos na cidade com as calças na mão. Estacionámos a casa de imediato num dos parques da cidade. De resto, a própria cidade em si não é muito apropriada ao tráfego automóvel, apesar de estar repleta do mesmo. As ruas são apertadas, os cruzamentos perigosos repetem-se e os passeios, igualmente estreitos, põem-nos a andar lado a lado com os exagerados gases espessos e mal cheirosos da gasolina, que são realçados pela pressão da altitude da cidade. Potosi fica num pé dum cerro, o cerro Rico. O nome provém dos minerais inesgotáveis que se retiram da montanha através de cooperativas mineiras. Provavelmente todas as igrejas da Europa, não só em Espanha, há uma quota parte da prata que aqui foi sacada. Diz-se que seria possível fazer uma ponte de Potosi até Barcelona com essa mesma prata. Se quisermos ver noutra respectiva, daria para fazer a mesma ponte com os crânios dos escravos mortos na execução dos trabalhos. Inkas, africanos, aymaras e outros povos foram todos escravizados no cerro Rico. Depois da independência do país, as minas ficaram congeladas por uns tempos. Até serem criadas cooperativas nacionais, que pagando impostos ao estado, têm autorização para seguir com a exploração. Hoje é muito raro encontrar prata. O mineral mais recolhido é o lítio que, depois de exportado, volta à Bolívia em formato de bateria dos mais diversos apertos tecnológicos.
No centro da cidade, multiplicam-se as agências de tour para ir visitar as minas. Algumas são conhecidas por serem mais turísticas e outras, geridas por ex-mineiros, têm fama de serem tours um pouco mais conscientes face ao problema social que a exploração mineira representa. Durante séculos a esperança média de vida dum mineiro não ultrapassava os 30 anos de idade. Hoje, o cancro no pulmão continua a ser a maior causa de morte dos trabalhadores, a par com os acidentes que resultam das detonações dinamite dentro da montanha. Estamos a falar duma média de 3 mortos mensais, devido a este tipo de acidentes. Como é óbvio, dentro da montanha não há luz. Hoje trabalha-se com lanternas. Mas no tempo da colonização os escravos faziam-se vale de velas para se orientarem no meio da escuridão. Muitos foram os que entraram uma vez e nunca mais encontraram o caminho de saída. Outros tantos caíram em buracos, fora os que bateram com a cabeça nas pedras afiadas, e claro, os que morriam de cansaço e desnutrição. Já para não falar dos problemas de saúde de origem química que o trabalho de extração em si provoca. Resumindo, os cadáveres estendiam-se ao longo das minas, originando ainda mais problemas de saúde devido à falta de higiene.
Os colonos ficaram conhecidos por nunca terem entrado dentro do cerro. A par do processo de Catolicismo a que sujeitavam os demais escravos, tiveram também a iniciativa de criar uma identidade religiosa que vivia dentro da montanha, com o objectivo de assustar os trabalhadores. Esse Deus era uma espécie de Diabo. Ao contrário das expectativas, foi precisamente a este Deus que se agarrou a esperança dos escravos. Venerando-o em vez de teme-lo, pediam-lhe protecção. Hoje os mineiros, independentemente da religião que tenham cá fora, dentro da mina são todos pagãos. As esculturas do Tio (o nome da identidade religiosa) espalham-se ao longo das trilhas, no interior da montanha. No início ou final do dia, ou em ocasiões especiais, oferendas são dadas à identidade. Um cigarro é posto na sua boca, pinga-se álcool nos seu membros e fazem-se os pedidos de prosperidade. Cada mineiro, em equipa ou individualmente, define dentro da área da sua cooperativa, por onde explodir, escavar e abrir caminho. Se encontrar uma boa veia de lítio, estas fica a seu cargo, assim como os lucros. Cá fora, as mulheres dos falecidos mineiros trabalham também. Algumas são as responsáveis à entrada das escavações, controlando que quem entra sai no mesmo dia. Outras, trabalham partindo minerais com martelos, separando o que interessa do que não tem valor. Para nós foi muito emocionante visitar a cidade e cerro, um cenário histórico tão bem descrito nas “Veias Abertas da América Latina” do Eduardo Galleano. Estar no lugar presencialmente, depois de ler o livro, chega a ser arrepiante.
À volta da cidade, visitamos ainda algumas das diversas termas. Claro que mal ouvimos falar em águas termais, a imagem que nos veio à cabeça foi um complexo de termas naturais como estamos habituados em Portugal, ou mesmo no resto da Europa. Contudo, aqui a dinâmica e a estrutra é um pouco diferente. Sem gastar muitas palavras, o melhor é mesmo ver as imagens. A água é quente e terapêutica na mesma… mas o resto não é muito o que esperávamos.
Decidimos partir em direcção a La Paz, passando em Oruro. Contudo, antes tivemos direito a dois dias de acampamento mágico no meio dos Andes. No primeiro dia, uma tempestade brindou a nossa chegada. A meio da tarde, o céu escuro e carregado finalmente abriu-se e - para nossa surpresa - um arco íris saturado nasceu exactamente onde estávamos. Parecia que podíamos estender o braço e tocar nas cores daquela maravilha. A partir daí, o Sol dedicou retornar o seu lugar e pintou as montanhas ao nosso redor com a mais bonita luz. Quando vínhamos embora, retomámos o trilho mal definido no meio do mato. Para nossa surpresa, de repente o trilho foi interrompido por um campo recentemente lavrado. Dois agricultores, que já tínhamos conhecido no decorrer desses dias, decidiram destruir o trilho e abrir um novo campo de batatas e quinoa ali mesmo. Apesar de saberem da nossa presença, não lhes ocorreu que seria interessante - pelo menos - avisarem-nos que o caminho de volta ia desaparecer. Quando os interroguei, muito naturalmente disseram-me para contornar o campo lavrado. Seria algo óbvio de fazer, se não tivesses numa montanha árida, cheia de pedras, pedrinhas, pedregulhos e rochedos. Pneu ante pneu, lá fui muito devagarinho, enquanto lá fora a Catarina averiguava que nenhum deste tipo de rocha atrapalhava o nosso caminho.
Nesse mesmo dia, chegámos a Oruro. Não perdemos muito tempo a explorar a cidade. Apenas fomos ao mercado comer e visitar as famosas barracas de bruxaria. Aqui vende-se de tudo o que seja relacionado com medicina natural ou feitiçaria. Desde ervas secas, até sabões que atraem sexo e dinheiro, cadáveres embalsamados de alpacas bebés (que espantam as más energias), cordas para castigar crianças (!!!) ou vários óleos e misturas essenciais para todo o tipo de dor e reumatismo.
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Entretanto, ao longo da rua, cholitas fazem leituras de coca. Através das folhas da planta, as senhoras fazem uma espécie de leitura astrológica da vida dos clientes. Depois de almoço, retomámos a estrada cruzando o incrível e tremendo cenário Andino até às imediações de La Paz.
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