A saída de Samaipata ficou marcada por uma decisão. O carro estava com problemas com a água devido à tal limpeza negligente do radiador ainda em Santa Cruz. A água saía pela tampa do próprio depósito o que das a entender que a circulação e suposta refrigeração da mesma não estava a acontecer. Por um lado, Santa Cruz ficava a pouco mais de 100km e já conhecíamos a estrada, sabíamos que esta não tinha muitas subidas. No entanto, significava andar para trás e voltar a uma das mais caóticas cidades da Bolívia. Na outra mão, a segunda hipótese: continuar em direcção a Sucre. A distância era praticamente o dobro de Santa Cruz e, a grande desvantagem, não conhecíamos a estrada, mas com certeza subiria, pois Sucre ficava a uma altitude maior de onde estávamos agora. Após indagar e procurar informações nas agências de autocarros e na estação de serviço, decidimos arriscar e seguir até Sucre. O dia estava de chuva e frio, o que era bom para o não aquecimento do carro, e as pessoas disseram-nos que a estrada até Sucre estava boa. “Boa” é sempre muito relativo quando se fala de qualidade de estradas. Desconfio que “boa” nos padrões bolivianos, em parte, significa “não morreu ninguém na última semana”. Confiantes e atentos ao carro, fizemo-nos à estrada e tudo correu bem.
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Chegando a Sucre, e depois da volta da praxe visitando vários mecânicos, não estávamos satisfeitos com nenhum. Decidimos tentar um mais antes que a noite chegasse. Também não foi aqui que nos resolveram o problema, mas desta vez desencaminharam-nos para um especialista em diesel. Quando chegámos à morada indicada, para nossa surpresa tratava-se duma casa particular, até aqui tudo bem, não é assim tão diferente do normal. A única coisa estranha é que não havia os carros e a confusão do costume à porta de casa. Batemos à porta e fomos recebidos por Don Marco, o dono. De imediato, gostámos desta figura e da sua apresentação e discurso. Toda a sua equipa viria a revelar-se também muito profissional e simpática. No diagnóstico do problema, não se contentam em atirar o primeiro barro à parede. observaram o carro com calma, ponderaram diferentes hipóteses e definiram a melhor estratégia de eliminar probabilidades. Isto tudo incluíndo-me sempre para que eu ficasse a par de cada procedimento. Assim, acabámos por descobrir que provavelmente na limpeza do radiador entrou ar para o circuito de água. Estas bolhas de ar danificaram o termóstato e o sensor de temperatura. Como se não bastasse, ao retirar ou colocar o radiador foi também danificada a ficha eléctrica duma das duas ventoinhas que estão acopladas ao radiador. E, por fim, detectámos ainda um problema, bem audível, no motor de arranque.
Depois de vários testes, seguiu-se a luta para encontrar peças suplentes. Nunca é fácil, mas acaba-se sempre por encontrar alguma semelhante dum outro modelo VW ou até mesmo duma outra marca cuja peça é parecida o suficiente para se fazer uma adaptação. Mas desta vez, nenhum dos casos ocorreu. Assim, no termostato fez-se uma abertura para que este permita sempre um circuito mínimo de água, o motor de arranque foi desmontado, limpo, lubrificado e remontado, a ventoinha reparada normalmente e para o sensor que funciona, mas sem grande precisão, não houve solução. No final dos 3 dias de trabalho, Don Marco fez-nos um desconto para ajudar, contudo a reparação não deixou de respeitar um custo muito grande. E o que deixa um sabor mais amargo na boca é que os problemas não ficaram realmente resolvidos. Até agora conseguimos sempre fazê-lo, mas desta vez tivemos que nos contentar em simplesmente remendar a coisa.
Como uma forma de testar o carro, fomos até Tarabuco, uma pequena vila que apesar de ficar perto de Sucre, encontra-se a uma altitude muito maior. Aproveitámos que aos Domingos todas as comunidades em redor da vila, se reúnem na mesma para uma grande feira de têxteis artesanato local, como ponchos, gorros, luvas, tapeçarias, bordados, camisolas, entre outros. O artesanato andino é lindo de morrer! Ao início todas as bancas parecem iguais. Mas à medida que os nossos olhos vão descortinando o têxteis, o nosso gosto vai-nos mostrando as diferenças que acabaram por se tornar fáceis de encontrar. As coisas que gostávamos mais, fossem ponchos ou roupa, tinham cores mais sóbrias. Vermelhos de sangue ou cor de vinho. Castanhos que se multiplicavam em várias tonalidades. Apontamentos em rosa e azul pastel. Tudo isto rasgado por padrões delicados e algo geométricos. Estes eram os produtos mais caros, pois eram antigos e a maioria feito ainda à mão. A partir daí, o preço pode variar por dois motivos: o tempo de mão de obra: quanto mais minuciosos os padrões e apontamentos; e a qualidade da lã: pode ser de ovelha, alpaca grande ou alpaca bebé. A lã de alpaca adulto resulta em peças mais grossas, mais pesadas, ásperas e rústicas, por isso são um pouco menos caras. A de alpaca beber resulta em peças levas, suaves, super macias, dá vontade de esfregar as bochechas em tudo o que é de alpaca bebé. Por isso mesmo, estes são os produtos mais caros.
Depois existe aquilo a que pudemos chamar de neo-artesanato andino. São peças pré-definidas, feitas de forma industrial. Os padrões são menos interessantes e mais óbvios. Por sua vez, as cores são de alguma forma mais modernas e, supostamente, mais apelativas. O contraste entre cores sóbrias e tons pastel, dão agora lugar a cores garridas e apontamentos em florescente, principalmente em rosa e verde. Os tecidos têm uma luminosidade muito maior. Se não conhecêssemos os trabalhos antigos, este neo-artesanato seria interessante na mesma, mas uma vez tendo contacto com o que se fazia mais antigamente, as peças novas perdem um pouco de encanto. Claro, que este é o artesanato mais barato e fácil de encontrar em todo o lado.
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Na verdade, se compararmos com a realidade Europeia, as peças não são nada caras. Nós perdemos a cabeça e compramos um poncho por 200 bolivianos negociados até à última. Ou seja, cerca de 23 euros. A mesma peças, com tais dimensões largas, feita à mãe e de tecido natural, numa aldeia remota de Portugal custaria muito facilmente três ou quatros vezes mais. Para quem está a viajar de trocos contados (apesar da tentação de comprar tudo o que se gosta), sim, é relativamente caro! Contudo, para quem vem em negócios, fiquei com a ideia que é um mercado muito lucrativo. Organizando bem as coisas, pareceu-me compensar vir de propósito à Bolivia só para fazer uma grande comprar de tapeçarias (principalmente), enviar para a Europa e nas grandes lojas de colecionadores e especialista, vender as peças dez vezes mais caras. Por exemplo, numa das lojas encontrámos um francês que lado a lado com a vendedora abria tapetes no chão e fotografava-os constantemente. Enquanto o fazia, pergunta todos os detalhas sobre a peça em questão. Pois, muitas vezes o que para nós é apenas estético, tem na verdade um significado. Por exemplo, muitos dos padrões e desenhos são frequentemente representações de calendários de plantação e colheita na região andina. Pareceu-nos que este homem estava a comprar produtos para um revendedor, que provavelmente estaria em Paris ou assim. Agregando todo o valor histórico e a simbologia por de trás de cada peça à qualidade de manufactura e dos próprios tecidos, considerando que estas peças são feitas à mão, acredito que cada tapete destes custe um valor milionário numa qualquer loja de tapeçarias étnicas duma capital europeia. Ao final da tarde, regressamos a Sucre, ainda com direito a uma sesta e um passeio no meio da Natureza, pelo caminho.
Em relação ao carro, o teste foi muito bem sucedido e este não apresentou problema nenhum com a água. De volta à cidade, aproveitámos os restantes dias para conhecer melhor, aquela que é todavia a capital da Bolívia. Apesar do governo e todos os poderes estarem concentrados em La Paz, é na verdade Sucre a capital oficial do país. Esta capital desconhecida é chamada de Ciudad Blanca. Principalmente, no centro histórico são magníficos os edifícios coloniais, sempre pintados de branco. A cidade, como tantas outras no país, ficava cravada no topo duma montanha. Como tal, as ruas são escarpadas, dando a impressão muitas vezes que o carro vai simplesmente cair para a frente ou para trás.
Depois de um passeio e visita a algumas atracções turísticas, brindamo-nos com um jantar vegetariano num restaurante bem gringo. Já desde há muito tempo que reparámos que - por norma - os turistas (e na Bolívia há muitos) raramente amem do circuito turístico. Fora das grandes cidades e dos grandes atractivos que estão nos guias, não se vê turistas praticamente. E mesmo dentro destas cidades, sentimos que se reduzem sempre a circular nos quarteirões dois hostis e restaurantes de imitação Europeia. Por uma questão financeira e não só, sempre que comemos fora, fazemo-lo no que seriam os tascos bolivianos ou no próprio mercado municipal. Aqui a comida não é a melhor do Mundo, mas é muito barata e igualmente importante é sempre uma oportunidade de aprofundar o contacto com a comunidade e cultura local, seja através de alguém que conhecemos aqui, uma conversa ou, simplesmente, por observar as dinâmicas à nossa volta. Confesso que temos um pouco de aversão a outros turistas, como de resto acho que todo o turista sofre desse síndrome também. Em qualquer blog ou guia de viagem é sempre tido como um aspecto positivo quando um local não é frequentado por muitos turistas. Mas pelo que observámos as pessoas não parecem (no geral) estar muito dispostos a sair da sua zona de conforto. Os cafés, bares e restaurantes de imitação ocidental estão sempre repletos de “roupas da Decatlon”.
Não sou apologista que viajar é um acto transformador por si só. Tudo depende da nossa intenção, de como nos envolvemos com a viagem; as pessoas e os lugares; e da nossa abertura para o desconhecido. Também não considero que todos temos que estar aqui (seja onde for) à procura de experiências reveladoras. Com isto quero dizer, que estou a tentar não julgar “estes turistas que vêm para aqui e não demonstram interesse nenhum em sair da sua zona de conforto para tentar realmente aprofundar o conhecimento sobre a cultura local do país que, afinal de contas, escolheram - supostamente -conhecer”. Pronto! Já julguei, saiu. Uma vez por outra não faz mal!
Antes de sairmos da cidade, acabámos por encontrar um tão desejado fogão de campismo a gasolina, para acabar por uma vez com as dores de cabeça de encontrar gás. Por acaso, no dia anterior tinha decidido fabricar um fogão de combustão a álcool com latas de conserva e algodão. Agora temos duas hipóteses. De novo com independência gastronómica, partimos em direcção a Potosi!
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