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De volta a La Paz, desta vez, optámos por uma estratégia diferente. Deixámos o carro no parque aeroporto, em El Alto, e fomos de autocarro até ao centro. Após mais umas voltas na cidade, finalmente chegou a hora do concerto. Corrijo o que disse sobre os teleféricos serem a melhor actividade de La Paz. O concerto que acontece todos os sábados no museu dos instrumentos é, sim, a cereja no topo do bolo. Num ambiente pequeno e familiar. O espetáculo é conduzido de forma muito interactiva, sempre com muito respeito pela cultura andina. Histórias são contadas, os quadros nas paredes apresentados ao público e na segunda parte o grande maestro, já velhinho, sobe então ao palco e com o seu pequeno charango faz a nossa pele arrepiar-se. No final, lá fomos os dois muito tímidos pedir os respectivos autógrafos ao cantautor Ernesto Carvour. Conversa puxa conversa, ele apaixonou-se pela nossa história e convidou-nos para jantar juntamente com outras figuras do panorama musical boliviano. Estou a brincar! Isto foi o que eu imaginei. Simplesmente escreveu-nos o seu nome e “um abraço”, entregamos-lhe uma fotografia que eu tirei duma paisagem perto da cidade de Uyuni e nada mais. Tivemos o nosso minuto de atenção e fomos à nossa vida.
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No dia seguinte, partimos de novo para a margem do lago Titicaca. Mas desta vez, em direcção à parte norte do lago, como quem diz, já em direcção à fronteira com o Peru. Descobrimos um parque lindíssimo onde ficámos três dias acampados. À noite a janela lateral da carrinha virava uma televisão e podia-se assistir em directo à lua cheia a brilhar no céu e, por baixo de si, o seu imenso reflexo desenhado na penumbra do lago. Pela manhã, a programação televisiva retomava com o nascer do sol, exactamente na mesma posição. Por dois dias tentei pescar sem sucesso, como sempre. A sorte é que não fico frustrado com o fracasso das minhas tentativas, pois na verdade, não sei o que vou fazer na primeira vez que tiver um peixe na mão. O mais provável é que ponha as minhas expectativas de lado e devolva o peixe ao rio ou mar. Afinal de contas, acho que pescar vale pelo acto em si, o ritual. Não tanto o resultado final. Damos por nós tantas vezes a fazer coisas que nos custam tanta energia e demais problemas sem que sentido nenhum reconheçamos nisso, que pescar é uma escolha bem inocente para focar o nosso tempo sem finalidade nenhuma.
A próxima paragem foi Copacabana. Não, não voltamos ao Brasil. Existe uma Copacabana na Bolívia também, e por sinal bem bonita. Visitámos a típica Ilha do Sol. Um pescador levou-nos pela manhã e trouxe-nos ao final da tarde. Pelo caminho, falou-nos da sua vida e do seu país. Todos os dias acorda às 3 da manhã e só toma o pequeno-almoço por volta das dez. Até lá há que recolher as redes e colocar nas novas. Vem sempre um camião de manhã cedo buscar o peixe para levar para La Paz. Pela tarde, o trabalho estende-se até por volta das cinco. Todos os dias da semana. Quando lhe perguntei se pelo menos ao Domingo descansava, disse-me que não. Desabafei que a sua rotina era muito dura, respondeu-me encolhendo os ombros, dizendo que era o seu trabalho e tinha que o fazer. A ilha do Sol é muito bonita. Entrámos meios ilegais, por uma espécie de porto abandonado, onde não se pagava entrada nem para os barcos atracarem na ilhas, nem para as pessoas ingressarem. Caminhámos por uma hora até ao centro da ilha. Por lá almoçámos uma truta frita e, pela tarde, continuámos o passeio visitando os miradores da ilha. Ao final da tarde, cortamos caminho pelo meio do monte e fomos até ao porto ilegal de novo. O nosso amigo pescador chegou exactamente ao mesmo tempo que nós. Já não estava tão comunicativo, os olhos pesavam-lhe tanto que me doíam a mim também os meus.
Não tínhamos pensado ficar muito tempo em Copacabana. Mas a verdade é que… os dias foram passando. Pelo andar da carruagem só voltamos a Portugal em 2055. Não sei o que se passa connosco, mas temos que ter muito cuidado sempre que estacionámos a carrinha, porque a tendência tem sido acabar por ficar dias seguidos em qualquer lugar! Foi o que se passou. Um casal inglês com quem já nos tínhamos cruzado algumas vezes na estrada, disse-nos que estava acampado num jardim dum hotel mais afastado do centro da cidade. Decidimos ir espreitar com a perspectiva de dormir duas noites, para recuperar forças antes de ir para a fronteira com o Peru. O que aconteceu? Ficamos nove dias! Se alguma vez na vida, à um ano atrás, pensaríamos gastar dinheiro em acampar por uma noite, quanto mais por nove! Claro que também não é em qualquer país que se pode fazer isto, na Bolívia os preços são propícios a estas maluquices. Aproveitámos para escrever para o blog e, pela primeira vez, actualiza-lo até à data real. O que significa que quando tiverem a ler isto, provavelmente estamos a caminho do Peru e nada de especial se passou, provavelmente.
Esta estadia prolongada deu-nos a oportunidade de assistir às famosas festas da Cruz del Sur em Copacabana. Celebra-se o facto de a constelação estar o mais próxima da terra possível. E como todas as grandes celebrações na Bolívia, isso é motivo para três ou quatro dias de bebedeira de manhã à noite. E, claro, cortejos e mais cortejos. Ao contrário do Carnaval, desta vez os desfiles eram mais organizados, as danças mais danças, de facto e as indumentárias muito mais bonitas e trabalhadas. Para nós as celebrações acabaram, quando fomos adoptados por um grupo de amigos. Ofereceram-nos muita simpatia e, principalmente, muita cerveja. Graças ao formato tradicional de se beber aqui, onde temos que convidar constantemente alguém para beber e tudo tem que se beber de shot, não pode ficar nada no copo, em uma hora estávamos para lá de Bagdad!
Depois de três meses na Bolívia o nosso entusiasmo murchou, confesso. Se no início, toda e cada diferença cultural do país para nós era um motivo de curiosidade e entrega, depois destes meses, os pequenos atritos diários causados por esse choque cultural começaram a tornar-se numa dor de cabeça. E quando isso se torna um ciclo vicioso, a nossa paciência e compreensão tende a dar lugar a julgamentos e depreciações. Nas lindas paisagens que cruzávamos a atenção já só caia sobre o imenso lixo espalhado por todo o lado. O plástico é realmente um problema neste país. A comida nos mercados já não era saborosa, mas sim uma decepção a cada prato. Quando as cholitas se agacham e mijam no meio da rua, deixando um pequeno rio escoar por debaixo das saias, já não era motivo de mais nada que algum repúdio. A comunicação que às vezes é difícil estabelecer nas situações mais simples, como por exemplo procurarmos um lugar para encher o depósito de água da cozinha e não conseguirmos porque as pessoas dizem simplesmente que não, sem que consigamos perceber se é por má vontade, por desconfiança sem má intenção ou se fomos nós que não soubemos explicar o que precisávamos. As respostas tortas quando perguntamos o preço de algo e a má reacção se não levamos. A sensação com que ficámos, quando percebemos que alguém nos cobrou mais por alguma coisa por sermos turistas. Enfim, uma série de pequenos factores começaram a ganhar apenas a nossa perspectiva negativa. Pessoalmente, eu adorei a Bolívia. Para mim este é o coração genuíno da América do Sul que eu tanto idolatro. Contudo, como um casal cansado, nos últimos dias a nossa relação perdeu o sal. Sinto que vamos embora na altura certa. Na altura em que ainda se vai a tempo de guardar as memórias de tanta coisa boa, em vez de ficar apenas agarrados à perspectiva negativa dos últimos tempos. Não estou de alguma forma a culpar o país. Nós próprios já levámos muito tempo de estrada, e esta querida Bolívia de tão intensa que é, levou-nos a um cansaço que não sai com duas noites de descanso.
Agora é tempo de renovar energias e entregarmos o melhor de nós ao Peru. A esta altura do campeonato já conseguimos, verdadeiramente, não criar expectativas. Por isso, estou seguro que surpresas boas e más vão acontecer, só temos que ter a disponibilidade física, mental e emocional de lidar com o que vier por aí!
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