Esperávamos um cenário escuro onde o Sol não entra. Onde esse céu, cinzento e tóxico, é atordoado por um tráfego horripilante de helicópteros. Prédios tão grandes, que não é possível ver o topo. Cá em baixo nas ruas, sujas e frias, onde já só os pobres caminham entre cartões e poças de mijo, um ambiente de cortar à faca. Um odor asqueroso espalhado por todo o lado. Ratos, ratazanas e a maior podridão humana, misturados com a mais alta tecnologia que esconde uma suposta qualidade de vida urbana nunca antes vista pelos nossos olhos. Mas não… São Paulo - diga-se na verdade - é uma cidade bem pacata. Talvez não seja assim tão calma e relaxada como a sentimos, talvez fosse só o efeito consequente da nossa expectativa de ir encontrar um caos, um projecção trash futurista. Imaginávamos uma espécie de Blade Runner ou algo assim.
Entrar na cidade foi relativamente fácil. Não vou negar que nos semáforos ficava tenso o suficiente para deixar sempre a primeira engatada e um olho no retrovisor. Conseguimos um Coachsurfing perfeito, a duas quadras da Paulista, a avenida principal, e com garagem para o carro. Nem queríamos acreditar! Lá fomos seguindo as indicações do GPS até à morada do nosso anfitrião. A meio duma rua de serviços, onde não se via uma casa particular, o mapa anunciou “chegou ao seu lugar!”. Por um frame pensamos que a morada estava errada, mas acabamos por reparar que estávamos perante um complexo militar. O Coachsurfing era dentro dum condomínio onde moram os militares. Indecisos se isso seria bom ou mau, lá fomos à recepção explicar a nossa situação e em 5 minutos o Marcelo apareceu para nos receber.
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O Marcelo é um Cearense de Fortaleza divertido e conversador, que nada tem a ver com a imagem típica do militar. Gosta da vida boémia, ensinou-me sobre música de todos os cantos do Brasil, está a aprender fotografia e vídeo e adora pintar. Neste momento, está destacado em São Paulo, mas até à pouco tempo estava em Salvador da Bahia. Contudo, lá teve uma série de problemas amorosos e o melhor foi ele pedir transferência para outra cidade. Excesso de informação? Foi o que eu achei. Nesta altura ainda era aquele ser ocidental, pequeno e púdico social com a ilusão de que existe um conceito chamado privacidade. Todo esse arquétipo viria a ser violado por um Brasil onde tudo se diz, tudo é motivo de boato e gargalhada e nada se esconde. Nunca ninguém aqui ouviu a palavra “tabu” - eu acho -, não existe esse conceito.
Escrever sobre visitar cidades é aborrecido. Fizemos a Paulista de trás para a frente, visitamos os museus onde toda a gente vai, como o Masp e o IMS. Fomos ver a cidade vista do topo dum arranha-céus, visitamos a Vila Madalena, o bairro onde há muitas ruelas, grafitis e lojas caras para cacete. Comemos um Ramen no bairro Liberdade, a grande chinatown de são Paulo. Assistimos a um concerto na rua e passeamos sem rumo pelo centrão. Enfim, todo o lugar comum onde toda a gente vai, suponho. O que realmente me marcou foram as iscas com batatas fritas que encontramos num restaurante barato e o espetáculo de stand-up comedy que o Marcelo nos levou.
Esperávamos o espetáculo começar, numa sala dum pequeno bar cultural, onde um piano lindo de morrer deve ter a sua vida ameaçada todas as noites e a todo o instante. Pousado sobre as suas teclas um cartaz gritava de forma escrita: “Não tocar no piano por favor; não pousar bebidas no piano por favor… na real, tente nem pensar no piano, por favor!”. As diferenças entre o português de Portugal e o Brasileiro dariam um post em formato de Bíblia, talvez um dia me alongue um pouco mais sobre isso, mas uma coisa é certa, no Brasil de forma geral há um modo engraçado de dizer as coisas, um modo que a nossa forma de articular as palavras e os pensamentos em Portugal, não está pronta para conceber.
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Sentamo-nos na primeira fila. É mesmo a pedi-las, só se senta na primeira fila neste tipo de shows, quem quer fazer parte do mesmo em algum momento. E claro que esse momento chegou. Um dos humoristas fez uma pergunta à Catarina. Não me recordo qual pergunta ao certo, mas a resposta tão pouco era importante para o plot humorístico. Assim, depois de a Catarina falar, o humorista rapidamente ia retornar o seu roteiro de forma automática, quando o seu cérebro desligou o modo ditado e processou a informação: “Esta moça tem um sotaque estranho!!”. Perguntou-nos de onde éramos e quando respondemos que éramos portugueses, a sala ficou em silêncio, e apenas se ouviu lá ao fundo uma voz dizendo entre dentes “Fodeu…”. Aí toda a gente se riu. Outro tema que daria uma bíblia seria a quantidade de anedotas que existe no Brasil, nas quais os portugueses fazem sempre o papel de estúpidos, porcos e burros. Acabamos apenas por trocar duas de letra. Ele já tinha ido ao Porto e para explicar ao resto da sala o que era uma Francesinha, definiu-a como “uma espécie de bife à parmegiana”. Controlei-me para não subir no palco e dar-lhe uma facada. Mas com uma condescendência snob, acalmei-me pensando para mim mesmo que não se podia esperar melhor de quem come arroz com feijão-o-todo-o-santo-dia-porra!
Nessa noite a coisa não descambou. O humorista tinha o texto bem fechado e não deu para integrar piadas de portugueses à última da hora. Mas meses mais tarde, numa outra noite de calor à volta duma mesa repleta de cervejas, iria ser exposto à xingaria total com dois amigos velhotes em Olinda. Começaram por me dizer que conheciam uma anedota sobre portugueses, mas que não me iriam contar. Não que fosse indelicado da parte deles, simplesmente eu não ia perceber à primeira e eles iriam ter que repetir, e isso seria chato para eles. A partir daqui, abriu-se a sessão. Fomos desde a mulher portuguesa que queria levar um gambá (animal mal cheiroso) para Portugal escondido debaixo da saia e o marido tinha medo que ele não sobrevivesse ao cheiro da vagina da mulher; até ao português que foi o único a não deixar cair a pedra, quando Cristo anunciou “quem nunca errou, que atire a primeira pedra.” Vendo que o português era o único relutante em não largar a pedra que tinha na mão, Cristo insistiu. Até que o português confessou que daquela distância, de facto, nunca tinha errado o alvo. E por aí fora.
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A visita a São Paulo acabou no meu dia de aniversário. Confesso que fiquei um pouco triste por celebrar um ano tão importante, onde Saturno regressa, numa cidade. Um lugar que nada está relacionado com as minhas aprendizagens e o meu crescimento interior ao longo da viagem. Como forma de compensação, decidimos ir a um parque de diversões. Mais que nada, queria combater o meu medo de andar em montanhas russas. Sinceramente, depois de viajar de carro na América do Sul, não tem cabimento continuar a dizer que nunca andei numa montanha russa por receio da velocidade e da altura. E combati esse medo com sucesso! Só tivemos que esperar 2 horas numa fila interminável debaixo do sol, sempre em pé e quase sem água para beber. O “divertimento” durou 30 segundos, quase me partiu uma costela logo na primeira curva, e foi tão rápido o que aconteceu, que eu nem tive tempo de saborear o passo dado. Não fiquei fã. Por iniciativa própria não volto a andar noutra, mas se um dia tiver filhinhos, já me sinto capaz de os acompanhar fingindo que adoro montanhas-russas e não dando uma de pai cagão. Brincadeira. Eles podem ir com a Catarina, eu fico a tirar fotografias.
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