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Um Comboio de Muitos Apeadeiros

Foto do escritor: PéterPéter


A vida não é mais que um enredado de histórias, tal como uma cesta de vime. Muitas vezes algo acontece, seja ruim ou bom, e não lhe encontramos um contexto. É na verdade uma história que se inicia, mas apenas se vai desenrolar tempos mais tarde. O melhor é guardar o sucedido na memória, pois ele vai-se tornar vívido quando a altura certa chegar.


Ainda no Paraguay, certa noite seguíamos devagar por uma estrada, procurando os nossos amigos Jeanne e Alex que, algures na berma, esperavam por nós para nos levarem ao acampamento por eles encontrado. De repente, fomos atordoados pela ventania dum camião que nos ultrapassou. Este retomou à faixa de rodagem demasiado cedo. Só tivemos tempo de dar uma guinada no nosso volante para a direita, por sorte, a traseira do camião levou apenas o nosso espelho retrovisor, desfazendo-o em cacos, e nada mais se danificou. Esse dia, em especial, não estava a ser dos mais felizes, e esse acontecimento parecia ser só mais algo que corria mal. Para quem se lembra do espelho que partiu no contentor a caminho do Uruguai, sim, foi esse mesmo. Definitivamente o mapa astrológico do objecto estava traçado para que ele não fizesse a viagem connosco de qualquer jeito.



À saída de São Paulo um fole de direcção rebentou. Indicaram-nos uma oficina na periferia e lá fomos muito bem recebidos e atendidos, a High Torque. Enquanto esperávamos que o serviço fosse feito, reparamos num rapaz que chegou. Percorreu o corredor central por entre os carros com um tom de protagonismo, cada funcionário o cumprimentava com entusiasmo e esta nova personagens distribuía sorrisos e abraços por todos eles. Estávamos, sem dúvida perante algum tipo de vedeta. Rapidamente lhe chamamos a atenção. Veio falar connosco. Chamava-se Alê e era um youtuber bastante conhecido. O seu canal é sobre carros, mais especificamente carros tunning e estava maravilhado com a nossa história. Ele mesmo já tinha feito um tour, onde tinha percorrido toda o litoral brasileiro. Reparando na ausência do nosso espelho retrovisor, falou-nos dum amigo que era mecânico e apaixonado por T4, Volkswagens como as nossas. Propôs-nos visitá-lo e pelo caminho fazer-nos uma entrevista para o seu canal. Esperou que tivéssemos prontos e levou-nos a conhecer o seu estúdio. Lá conhecemos também a Leka, a sua namorada. Os quatros enfiamo-nos na carrinha e fomos em direcção à oficina do Harvard - o seu amigo. Lá este ofereceu-nos um espelho usado. Pintou-o de preto, para condizer com o original da nossa carrinha, e instalou-nos prontamente o novo espelho. Pois, desde essa noite no Paraguai, que conduzíamos apenas com um retrovisor.



Desfizemo-nos em agradecimentos pelo gesto bonito. Depois o Alê e a Leka levaram-nos a comer Esfiras num dos seus restaurantes preferidos e terminamos a noite em casa da mãe do Alê, uma senhora duma amabilidade inarrável. Até hoje a entrevista nunca foi publicada no canal (7008 films) provavelmente porque eu a arruinei. Respostas como “praticamente só lavo o carro quando chove” ou “nunca rebaixaria a minha carrinha porque prefiro carros altos” não são propriamente o que um youtuber de carros tunnig quer ouvir. Mas perante o nervosismo de estar à frente da câmara, senti-me incapaz de mentir e muito menos com a capacidade de conduzir as minhas respostas de forma a que pudessem ser um pouco mais flexíveis. Já me aconteceu, enquanto realizador, não perceber porque alguém não é capaz de fazer ou cumprir algo “tão simples” que eu peço. Acho que dá próxima vez que isso suceder vou ter uma consciência e sensibilidade muito maior.



Partimos, finalmente, para o litoral. A primeira paragem foi Ubatuba. Lá ficamos dois dias seguidos. O lugar é maravilhoso, mas a paragem foi forçada por eu ter adoecido. Fiquei dois dias com 41 graus febre, enclausurado dentro da nossa pequena casa. Por sorte, tínhamos um bom apoio, o bar de praia mais próximo. O senhor prontificou-se em dar-nos água, casa de banho e algo mais que precisássemos. Perto ficavam também as barracas dos pescadores, e um deles, gentilmente, ofecereu-nos um peixe gigante e fresco. Conhecemos ainda um casal português que aí estava de férias. Falamos um pouco pela manhã e à noite visitaram-nos na carrinha, trazendo comida que lhes tinha sobrado, pois na manhã seguinte já iriam partir para Portugal. Ah, e claro. Trouxeram também os sabonetes e champôs do hotel. Aquele acto bem tuga, de fazer razia aos produtos de higiene da hotelaria.




Ao terceiro dia lá me recompus e seguimos viagem. Fomos parando em algumas praias pelo caminho, como se fossemos um comboio de muitos apeadeiros com destino ao Rio de Janeiro. Tomamos os nossos primeiros cocos gelados e banhos de água (ainda) morna. Uma espécie de introdução ao Nordeste, que viria viria alguns meses mais tarde. Em Trindade, no Parque Nacional da Serra da Bocaina, começamo-nos a maravilhar com as fantásticas paisagens verdes e tropicais da mata Atlântica. O bioma repleto de folhas gigantes que começa anteceder o Rio de Janeiro. Paraty foi também uma paragem, praticamente obrigatória. Os traços portugueses são claros na arquitectura da vila que recebe o festival de literatura todos os anos. Infelizmente não coincidiu com a nossa passagem.



Por falar, em língua portuguesa, uma grande surpresa para nós foi o facto de ninguém adivinhar a nossa nacionalidade. Nunca o imaginamos, mas durante todo o tempo que estivemos no Brasil, cerca de 90% das pessoas ao ouvirem-nos falar jurariam a pés juntos que nós somos Argentinos. Para nós este país maravilhoso ainda só ia no início, mas este seria um dos factos que mais tarde- e conhecendo melhor a cultura - iríamos associar a uma espécie de alienação que sentimos existir face ao mundo exterior. E que talvez possa justificar-se pelo facto do país simplesmente ser geograficamente grande demais.

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