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Finalmente acabámos por atingir o Piauí! Só iríamos cruzar a parte mais Sul do estado. Novamente, não parecia muito na teoria, mas na prática o Piauí parecia crescer à medida que avançávamos na estrada. Entretanto, as noites deixaram de ter o encanto daquela primeira. Muitas vezes chegava ao fim do dia, e só me apetecia sentar e beber uma cerveja gelada, tinha a cabeça em água e os olhos na ponta do nariz de tanto olhar em frente o dia todo.
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O cenário idílico do lago e do churrasco foi trocado por estações de gasolina e outros lugares não tão interessantes. Para nossa surpresa os alojamentos mais baratos nestas cidades do interior eram bem caros, e para os nossos amigos tornava-se mais complicado, pois enquanto nós dormimos dentro do carro seja onde for, para montar uma tenda é sempre mais difícil em contextos urbanos.
Acabei por ceder o meu lugar de chofer à Catarina que, orgulhosamente, fez o bólide deslizar pelas estradas esburacadas do interior do país. Por curiosidade, muita gente nos pergunta se nos revezamos. Sim... por exemplo, quando eu cortei o braço e tínhamos de ir para o hospital ou quando eu estava com febre! :D Esta questão é um tema para os dois. A verdade é que não se trata que eu não confie na Catarina. Eu não confio, sim, no trânsito sul americano. As pessoas conduzem com uma consciência abaixo de zero. Rapidamente um camião envolve-nos sem opção de escolha numa situação perigosa, os peões igualmente tornam-se imprevisíveis e os buracos muitas vezes parecem cogumelos, aparecendo do nada. Por estes e outros exemplos, prefiro ser eu a assumir a responsabilidade de levar a casa às costas. A verdade, e sendo um pouco dramático, é que ao virar da esquina pode estar o final desta aventura, caso aconteça algo de grave com o carro. Obviamente, que para a Levi todas estas preocupações lhe dão igual, isso são coisas complicadas no universo humano. Mais espiritualizada do que nós, ela vai a desfrutar da viagem a cada momento, sempre relaxada! Ao contrário da Catarina que, de tão tensa de conduzir, à primeira paragem adormece que nem um calhau!
Numa das noites acampamos num pequeno jardim duma praça igualmente pequena em frente a uma igreja também ela pequena. Mal estacionamos, a Catarina deitou-se e a Violeta e o ser que florescia na sua barriga adormeceram no jardim também, sobrando apenas a minha pessoa e a do Ricardinho. Como velhas companhias já! Fizemos o menu que também já se tinha tornado velho de tão recorrente naqueles dias: sandes com ovo e tomate para desenrascar.
Na falta de gás para estrelar os ovos, fomos bater à porta duma casa, pedindo para cozinhar os ovos rapidamente. O pedido foi acedido e enquanto o Ricardinho dominava a sua arte de fazer conversa e criar empatia com o resto da família, eu fui para a cozinha tratar dos ovos.
De repente, senti-me num programa de televisão, um masterchef ou assim. Eu ali de frente para o fogão, numa cozinha que não conhecia. Um silêncio ensurdecedor e duas senhoras debruçadas sobre a mesa ao lado, a observarem-me fixamente sem um segundo de distração com um sorriso maroto nas caras. Senti a pressão do julgamento! Não podia fazer nada de errado! E por mais que seja simples estrelar dois ovos, de repente, pareceu-me um desafio gigante o suficiente para me fazer tremer as mãos. Comecei logo com o pé errado.
Sem dar muito nas vistas, fiquei especado de frigideira na mão à procura da embalagem do óleo. Percorri o espaço com os olhos mais que uma vez, tentando ser o mais natural possível. “Cadê a porra do óleo?!” - pensei, lembrando-me do Pedro Henrique, novamente. Ao final de alguns segundos, assumindo uma pose de triunfo, a dona da casa lá perguntou saboreando o prazer de me ver meio enrascado na cozinha: “Precisa de alguma coisa?” Disse-me que não havia óleo e que no plástico ao meu lado tinha banha de porco. "Oh não! Há imensas embalagens de plástico ao meu lado, qual será?" E aí começou a minha ruína.
Atrapalhado lá comecei a apontar para as distintas embalagens: “Esta? Esta?” - abrindo e fechando caiu-me uma tampa! As senhoras apontavam de volta: “aquelaaaaa!” Como se fosse óbvio!! Mas ela está apontar mesmo para qual? “Ah, esta?”, respondiam “Nãooooo! A outra!” E depois duma confusão interminável lá descobri a que tinha a banha de porco e, claro... era a que estava mais à mão!
Gelo quebrado, as senhoras saíram da sua posição e poltrona de julgamento e acercaram-se do fogão. Começamos a conversar, enquanto eu fritava os ovos e, ainda que estivesse atento na conversa, em segundo plano não deixa de me concentrar no raio dos ovos, pois sentia os olhares delas a desviarem-se para a frigideira constantemente sempre à espera que um dos ovos colasse ou se desfizesse. Talvez nunca tivessem visto um homem na cozinha, pelo menos não estavam habituadas à presença masculina na nesse espaço de certeza, e por isso observavam-me com aquele sorriso matreiro. No final, agradecemos, enfardamos o nosso pão e juntamo-nos às nossas mulheres que há já muito dormiam profundamente.
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No dia seguinte, chegaríamos ao Jalapão, como quem diz, finalmente sairíamos da “porra do Piauí para entrar no estado de Tocantins. O calor, claro esse não dava tréguas e a cada oportunidade tomávamos uma ducha a qualquer hora do dia, fosse na estação de gasolina, num restaurante ou em um outro lugar qualquer. Com o decorrer dos dias, a rotina instalou-se e, de alguma forma, tornou familiar a dinâmica entre os quatro. Na estrada, eu conduzia, e a Levi e a Catarina faziam-me companhia à frente, enquanto o Ricardinho, a Violeta e o ser que na sua barriga se fazia florescer, dormiam os três subjugados ao calor e ao embalo demasiado bruto dos amortecedores que, nessa altura, andavam pelas horas da morte.
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