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O Bom, o Mau e a Aceitação

Foto do escritor: PéterPéter

A nossa estadia em Santa Cruz de la Sierra acabou pro se basear no mesmo pressuposto que a maior parte das grandes cidades por onde passámos, arranjar problemas mecânicos. Apesar de termos feito o mesmo ainda à pouco tempo em Brasília. Tínhamos deixado propositadamente um arranjo para ser feito na Bolívia, devido ao preço mais barato da mão de obra. Tratava-se de remover e reparar as vedações da caixa de direcção que já fazia algum tempo que pingava óleo, cada vez com mais frequência.


Depois de conhecer o centro da cidade e visitar alguns dos atrativos, iniciamos a ronda da praxe em busca dum mecânico aparentemente de confiança. Fomos parar à Rokbol por recomendação dum outro mecânico especialista em disser. Aqui na Bolívia, os carros a diesel não são muitos comuns, só mesmo os camiões. Pois devido às grande altitudes do país, as pessoas e o marcado optam por carros a gasolina, uma vez que a prestação destes não se deixa afectar pelas grandes alturas, como é o caso da nossa casa que perde força, demora muito mais tempo a aquecer pela manhã e deita uma fumarada, ajudada pelo vapor causado pelo frio matinal, mal cheirosa e pestilenta.


As oficinas mecânicas são um excelente exemplo da diferença dos padrões culturais e respectiva ginástica de adaptação, tentando sempre com dificuldade não fazer julgamentos sobre pessoas e situações. Se fôssemos a colocar o carro numa oficina limpa, organizada e com a aparência de ter todos os recursos necessários para o serviço, então acabaríamos por resolver nós próprios o problema na berma da rua. Não obstante, é exactamente na berma da rua onde muitas vezes os carros são tratados nas oficinas. Uma vez que a Rokbol estava a explodir de carros sem espaço para nem mais um triciclo, eu não percebi como iriam arranjar a nossa casa, ainda por cima não tendo um elevador para elevar o carro. Deitei-me com as minhas dúvidas e no dia seguinte de manhã apresentei-me à hora combinada. Não demorou muito para que as minhas dúvidas fossem dissipadas, o carro foi levantado com macacos e sustenido por blocos de madeira. “Asi, no más!”, disse-me o funcionário. Para quem já teve o carro arranjado no pátio de casa dum amigo no Rio de Janeiro, ficando apoiado em dois tripés fininhos de ferro durante uma semana a fio, aquilo para mim não foi assim tão chocante. Mas, claro, na jigajoga de equilibrar o carro em cima dos blocos de madeira, uma pessoa imagina sempre a casa de pernas para o ar. O resto do dia foi simplesmente de espera. No final, o serviço foi bem feito e até hoje não temos nenhuma reclamação. Pelo contrário! O dono da Rokbol ainda nos fez um desconto bastante generoso, deixando até os próprios funcionários surpreendidos. Genuinamente o senhor sentiu vontade de nos ajudar desta forma. Falou-nos de um casal, filhos de uns amigos, que estão também a viajar pelo Mundo, era um homem sensível e como prova da sua generosidade, ao lado da oficina mania um canil onde socorria e tratava cães de rua, que na Bolívia (especialmente) estão por todo o lado. Ainda nos quis oferecer um saco de ração de 15 quilos para a Levi! Desdobramo-nos em desculpas, mas infelizmente não podíamos aceitar, porque o saco é demasiado grande para caber onde quer que seja dentro ou fora do carro.


Nos dias seguintes, uma série de outras pequenas reparações tiveram também o seu lugar. Finalmente conseguimos calar as pinças dos travões que, não representando perigo nenhum, estavam um pouco soltas e teimavam em fazer um ruído desagradável em andamento. Conseguimos finalmente - também - um electricista que pôs o velocímetro e o conta quilómetros a funcionar de novo. Há mais de 6000 km’s que eles estavam parados! Um electricista no Brasil levou-nos os olhos da cara para resolver o problema e passado dois dias o problema voltou a acontecer. Creio que não somos os únicos viajantes a programas os seus arranjos mecânicos para serem resolvidos na Bolívia. De facto, a mão de obra e as peças, caso sejam necessárias, são mais baratas, mas essa não é a única razão. No geral, para além de mais económica, a mão de obra é muito boa. Os mecânico são conhecidos por ter um bom conhecimento e domínio na arte. Na falta dos mesmos, são igualmente reconhecidos pela sua criatividade em resolver e desenrascar problemas com poucos recursos.


Depois de minutos, horas, dias e quase uma semana, às voltas em Santa Cruz e o seu tráfego barulhento e perigoso, faltava-nos só apenas mais uma coisa. Limpar o radiador. Depois de tantos quilómetros (quase 30 mil ao todo, neste momento) e tantos desses feitos em estradas de terra, estava mais do que na altura de limpar as narinas da nossa casa. Completamente exaustos, não quisemos deixar essa última tarefa para o dia seguinte. Quisemos tratar disso ainda naquele dia, para que na manhã seguinte já pudéssemos partir para longe daquela confusão de cidade. Depois de muito procurar, não consegui encontrar nenhuma oficina especializada que parecesse fidedigna, nem tão pouco alguma recomendação dos mecânicos que havíamos visitado. Entalado, desesperado e irritado no meio do trânsito, enfiei a carrinha de repente numa das várias casas ao longo daquela avenida, que tinham uma placa a dizer “Limpeza de Radiador”. Nenhuma tinha bom ar, e decidi arriscar uma à sorte.


Fiquei a observar a dupla - dono e funcionário - a trabalhar na frente do carro. Depressa percebi que não gostava do jeito deles. Brutos e sem paciência, não estavam a tentar retirar o radiador, senão quase a arrancá-lo à força. Com as mãos forçavam em vão peças de plástico, insistindo em resolver um quebra cabeças pela força. A nossa carrinha não é comercializada na América do Sul e, à excepção do Brasil, a própria marca Volkswagen não tem uma difusão tão grande como na Europa. Aqui o mercado é mais direcionado para as marcas japonesas e norte-americanas. Por isso, algumas vezes por não conhecerem o sistema de organização e disposição mecânica dos componentes da Volkswagen, acontece os mecânicos terem algumas dificuldades iniciar o serviço, mesmo que este seja básico, como trocar umas pastilhas de travões ou uns amortecedores. Tendo isso em mente, aproximei-me da dupla manhosa com o intuito de ajudar, pois estou familiarizado com o carro. Não tive tempo para abrir a boca e dono da oficina comentou que preferia que eu me sentasse numa cadeira que estava ali ao lado e que esperasse, em vez de me aproximar e controlar o trabalho, porque eles não eram escravos de ninguém. Atordoado com aquela reacção, caí na cadeira e ali fiquei com dificuldades em digerir aquelas palavras. Por um momento, uma intuição passou com segurança na minha cabeça: Diz-lhes para remontar tudo o que já desmontaram, pega no carro e vai embora! Mas não consegui. De tão exausto que estava fisico e mentalmente, prostrado ali naquela cadeira, resignei-me, fingi não ter ouvido nada e entreguei-me á falsa esperança, por entorpecimento fiz-me acreditar que aqueles homens, apesar de mal educados saberiam o que estavam a fazer. A dupla acabou por conseguir retirar o radiador, lavou-o e tornou a colocá-lo no lugar. No final, sem vergonha nenhuma, pediram-me um valor super exagerado argumentando que o sistema do radiador não era fácil como os Toyota.


Nos dias seguintes, a caminho de Samaipata começariam os problemas. O carro deitaria água por fora através da própria tampa do depósito, o que significa que a água não estava a circular e a refrigerar o motor. Ou seja, algo de errado se tinha passado com a limpeza. Custou-me aceitar esta situação. Não me quis julgar pelo erro que cometi, mas tão pouco quis ser negligente e fingir que não poderia ter feito melhor. Precisei de muito tempo e energia para lidar com o facto de ter estragado a valiosa intenção de querer cuidar do carro (e consequentemente garantir que tudo está óptimo para que possamos seguir desfrutando da aventura), por me ter rendido à irritação, impaciência e descontrolo promovidos pelo cansaço emocional a que - em primeiro lugar - me deixei chegar inconscientemente. Mas tudo é uma aprendizagem, se assim quisermos encarar. E se eu pensava já reunir recursos e ferramentas suficientes em relação ao poder da aceitação, acabei por descobrir que ainda tenho muito trabalho pela frente.

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