Sempre pensamos que 2019 ia ser em Portugal, afinal o plano da viagem era apenas para um ano. Ao contrário, damos por nós a meio da jornada, com um montão de países ainda para conhecer. Mas, ao invés do ano passado, estamos tranquilos. Sem mapas e com poucos planos cremos estar onde devemos, aprendendo ao máximo com o momento presente.
Assim começou o ano, completamente imersos no AGORA.
Dia 1 amanheceu com yoga e depois passamos para o renascimento, uma técnica de respiração que abre as vias de comunicação com a essência de cada um. Este exercício limpou-nos a consciência e fez-nos repensar a viagem e as intenções de cada um, muito profundamente.
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Tão harmoniosos estávamos neste lugar que decidimos ficar, em vez de seguir para Manaus como tínhamos planeado, deixando as novas aprendizagens permearem definitivamente o nosso espirito.
Ficamos fazendo voluntariado com a agro-floresta, mas floresceram muitos mais interesses dentro de nós.
Os três primeiros dias foram para descansar do ritmo da passagem de ano, aproveitando para conhecer a praia de Canoa Quebrada, encavalitada em cima de falésias rugosas e vermelhas, com o céu coberto de para-pentes coloridos. o mar, apesar de revolto, continua quentinho e gostosinho (: Fizemos também parte de uma jam session, e tivemos tempo de nos encruzarmos com a restante equipa de voluntários:
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O Odram, uma presença que para sempre vai habitar o nosso coração, um ser de outro mundo com um sentido de justiça e uma bondade desmesurados. Mostrou-nos outra perspectiva do universo e fez-nos acreditar em vida noutros planetas.
A Fabrícia, menina-mulher, genuína e forte, em intenso contacto com sua criança-interior, a mais livre e espontânea mulher que cruzou o meu caminho.
O Dário, músico-italiano-itinerante , ouvimos sua harmónica harmonizar o ambiente dos mais distintos lugares da Flecha.
A Violeta, argentina enamorada pelo Brasil e pelo Ricardinho, de quem é companheira. Era a mãe do grupo: organizava a equipa, as compras e as tarefas. Mestre em picckles e fermentados, deliciava-nos com suas beringelas em escabeche.
O Fabão, super conversador e sempre com uma história louca para contar, melhor pizaolo de todos os tempos, com um coração do tamanho do mundo!
O Gian, rapaz dos mil oficios, exímio malabarista, mestre em macramé, barra na cozinha, daimista e soprador de rapé. Sempre, sempre, conversador.
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Com ele e com a Lívia fizemos uma roda de rapé na véspera de meu aniversário. O rapé é um pó de tabaco e outras ervas, que é inalado com um soprador. Pode ser auto-inalado ou com a ajuda de outra pessoa, o soprador. Os sopradores mais experientes adequam o tipo de sopro à ocasião ou pessoa, que podem ser curtos, espaçados e com intenções diversas. O rapé é usado ancestralmente pelas tribos indígenas para abrir os canais de comunição, ou como limpeza espiritual, mental e física. Foi o que me aconteceu, que fui directamente ao tapete com vómitos. Depois de um tempo de limpeza, amparada pelo Pedro, senti-me muito mais leve, e saudável!
Aproveitando a véspera da Lua Cheia, a Lívia propôs uma vaporização ao útero, outra prática da qual nunca tinha ouvido falar, mas que é muito comum na ginecologia natural. Consiste em utilizar o vapor de água como condutor das propriedades contidas nas plantas. Dependendo da planta utilizada é ocupado para limpeza, energização, tratamento ou simplesmente cuidado intimo e conexão com esta zona sagrada e fértil. Em volta do altar, cada uma com sua taçinha de agua quente e plantas de sua eleição, compartimos mais um momento de sororidade e intimidade. Assim, entrei nos meus 29 anos, de gatas, vaporizada e apresentada ao espaço sagrado que é o meu corpo e à divindade que habita dentro de mim.
Por muito tempo reneguei este conhecimento que sempre esteve presente, lutei contra ele e tentei encaixar-me num mundo masculino, onde a voz do corpo e da essência não são tidas em conta, não são escutados. Hoje compreendi que basta, que para mim abraçar estes saberes ancestrais em comunhão com a energia feminino é uma forma de empoderamento, de renegação da cultura patriarcal e fortalecimento da minha posição como mulher. Aceitar que sou sagrada e que devo respeitar-me, cuidar-me e venerar-me, abriu-me um caminho energético de auto-conhecimento muito grande.
O meu aniversário amanheceu da forma mais mágica possível, com o Pedro demonstrando-me que está pronto para ser pai. Ofereceu-me o bordado mais amoroso, plantando a semente da nossa próxima aventura e viagem: a da parentalidade, consciente, claro!
Este dia foi, também, a primeira lua nova do ano, o que simboliza o primeiro ciclo do ano, Estas duas coincidências: aniversário e novo ciclo - impeliram-nos a participar numa cerimónia de Santo Daime, na igreja Flôr de Canoa, vizinha da Flecha. A doutrina do Daime apropria-se da Ayahuasca para uma cerimónia cristã, então o culto é a Cristo, Jesus e Maria, mas com maior enfoque na natureza sagrada e com uso deste chá. Esta em específico, em que participamos, chama-se a “entrega de trabalhos” pois os daimistas vão entregar o trabalho espiritual que fizeram durante o ano. É cantada e bailada toda a noite, numa disciplina bem rígida! Os homens e as mulheres ocupam respectivamente cada metade do salão, vestidos com seus uniformes brancos bem engomados e de hinário na mão. O chão tem linhas orientadoras para cada pessoa se manter no seu lugar e não se pode abandonar o salão por mais de três hinos seguidos. A noite se passou cantando e dançando 179 hinos que são canções-orações “recebidas” pelo Mestre Irineu. Durante toda a noite houveram quatro despachos, ou seja quatro chamadas para quem quer tomar a Ayahuasca. Nós tomamos três despachos e em altura nenhuma tivemos algum tipo de alucinação/ descontrolo, talvez por estarmos também tão concentrados na leitura dos hinos e nos passos de dança, ahahah! Suponho que tenha sido muito importante para manter a energia durante toda a noite e a fluxo entre as pessoas no salão. Apesar de ter sido um esforço fisico muito grande (foi das 20h às 8h da manhã, com duas horas de intervalo a meio da noite), adoramos a cerimónia. Os valores que os cânticos passam são muito positivos, de irmandade, bondade e perseverança no caminho certo. Sentimo-nos muito bem acolhidos e acarinhados por este grupo de pessoas (:
Apenas um acontecimento manchou a nossa estadia na Flecha da Mata. Nessa madrugada, quando chegamos à cozinha comunitária, Niu (o cachorro da comunidade) mordeu o Pedro! Sem motivo aparente, desatou a correr na sua direcção e mordeu-lhe o joelho! O mais engraçado -gosta de contar o Pedro- é que no final da cerimónia, no momento meditativo, estando de olhos fechados, a imagem de uma dentadura gigante abrindo-se e fechando, enquanto crescia vinda na sua direcção, apareceu na mente do Pedro! E o que aconteceu a seguir? Foi mordido de verdade! Agora é engraçado, na altura nem tanto. Assustados e zangados, ponderámos ir embora nesse mesmo dia. Mas depois de descansar um pouco, o Pedro decidiu que seria melhor ficar para lidar com o acontecimento de frente, e não ficar com algum tipo de medo a cães, embora já seja a terceira vez que ele é mordido ao longo da viagem. Claro que o ambiente ficou sempre um pouco pesado, pois o Niu é realmente atravessado, mas valeu a pena!
Passamos os dias tentando sobreviver ao calor e nas noites à invasão das muriçocas (mosquitos assassinos), encharcados em água gelada pelo dia e repelente cancerisna pela noite, fomos dançando por duas semanas. Fizemos um caminho de paus na agro-floresta, cuidamos da hortinha orgânica, lemos Osho, conversamos muito, assistimos a um concerto meditativo dentro da Oca, trabalhamos para o blog, fizemos amigos, imprimimos o Ceará na nossa pele morena e eu comecei a aprender a tricotar! O desfecho destes dias surreais, nublados de calor e amor é ainda mais inesperado: a Violeta e o Ricardinho decidiram seguir a viagem connosco! Uns dias antes da partida descobriram que estavam grávidos e como precisavam de algum tempo para pensar na vida, queriam ir até Minas Gerais, ter com a família do Ricardinho. Por isso propuseram juntar-se a nós na viagem até Brasília, daí a gente seguiria para a este, Bolivia, e eles para sul, Uberlândia, MG.
Contentes, diferentes, crescidos e com o coração a explodir de gratidão por todas estas aprendizagens, dia 16 de janeiro despedimo-nos da Flecha da Mata, a seis!!!
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