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O cenário é uma casa labiríntica de três andares, rodeada pela mais diversa vegetação, num condomínio desenhado sob uma rua íngreme de calçada de pedra. Depois de passarmos pela casa de partida, chegamos ao quarto. Uma divisão acolhedora e reservada para nós. Somos vizinhos da frente duma das personagens mais determinantes do jogo: a avó Zika. A personagem guia, que nos leva pelo tabuleiro entre baixos e altos, é o Raphael. Um homem de retórica armada, palavras saem-lhe disparadas da língua, bombeadas pelas emoções mais transparentes e aglomerando-se numa teia de aranha de ideias paralelas, onde assuntos são metaforizados e acompanhados de dados históricos, que parece saber com a maior naturalidade do mundo.
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Depois surgem as personagens que complementam o enredo e dão novas camadas à história. Comecemos pelo vizinho do lado, o Paulinho. Um jovem cheio de vitalidade e imaginação, se o seu discurso corrente fosse convertido em pintura, Jackson Pollock morreria inseguro das suas capacidades de expressão abstracta. Thiago e Roberta, o casal que aparece pontualmente, traz sempre consigo uma boa dose de humor e umas quantas histórias secretas até então não reveladas. Manuel, o mecânico amigo da família. Personificação da malandragem carioca, aparece quando lhe dá jeito - ou melhor, não aparece quando não lhe dá jeito - sujeito caricato, não digno de confiança, mas pelo qual não se consegue deixar de criar um laço de simpatia.
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A avô Zika tem quase 90 anos, tirando a vista que lhe falha (mas ela quase nem repara) está pronta para o que der e vier. Sempre que caímos na casa desta personagem, ficamos horas sentados à mesa a ouvir histórias da sua vida infindável. De dia para dia os episódios tornam-se cada vez mais mirabolantes e satíricos. Desde gatos que morrem acimentados numa parede do churrasco, às estranhas personagens que consigo trabalhavam na fazenda café. Ou a macumba a que um dia de manhã decidiu roubar o dinheiro e pela noite o espirito entrou-lhe pelo quarto a dentro, disfarçado numa ventania reboliça. Para conquistar a confiança desta personagem, primeiro é preciso conquistar a confiança das suas duas guardiãs: a Fiona e a Joy, duas almas maquiavélicas que em outra vida fizeram parte do exército da URSS e hoje vivem reencarnadas no corpo de dois Pugs pequenos, gordos, amarfanhados, mal ajeitados e extremamente fofos. A personagem Zika é uma caixa de surpresas. À sua volta rondam mitos que muitos não se atrevem a confirmar a sua veracidade. Por vezes, Zika desaparece e a casa fica em silêncio. Uma música de piano começa-se a ouvir pelo ar. É normalmente uma música dócil e suave, carregada de uma nostalgia contagiante, mas que corre contra o tempo para apanhar as notas na pauta, uma vez que os dedos já não têm a agilidade de outros tempos, principalmente aquele dedo indicador que já não estica completamente. Diz quem, numa dessas tardes, já ouviu a música a soar pelas paredes da casa, que o set acaba sempre com a música dos parabéns, martelada uns bpm’s abaixo do ritmo esperado tradicionalmente.
O jogo avança catapultado pelas interacções entre a avô Zika e o Rapha. É uma cadeia de acção - reacção que nos leva pelo tabuleiro fora. Ora, a Zika faz comida e põe a mesa, mas o Raphael recusa comer a sua comida. Ora, o Raphael se chateia com a Zika, porque esta decidiu ir varrer o pátio para debaixo da chuva com o objectivo de poupar água. As duas personagens principais vivem em interacção contínua, oscilando entre momentos de zanga e carinho. É sob estas circunstâncias que o personagem Paulinho se torna crucial. Com a sua energia duma criança adulta, uma espécie de feitiço a quem ninguém consegue resistir, este sempre surge no momento certo com a piada certa. Mesmo quando apareceu à noite sem fazer barulho e decidiu assustar a avó Zika que estava sozinha na sala, quase a dormir em frente à televisão (literalmente EM FRENTE à televisão, pois a distância que separa a avó do ecrã não vai para além de quarenta centímetros). Paulinho sempre está por casa. A sua aparição é tão saudável, que se dispensa aviso prévio da sua chegada. Já “chegou chegando”, espalhando boa energia pelo ar, cantando músicas surf rock e aceitando prontamente toda oportunidade de encher a barriga. À noite Raphael é capaz de cozinhar todo e qualquer alimento no prensador de tostas mistas, aos fim de semana a família muda-se para o churrasco. Sendo que a avó Zika sempre tem um desconto de atraso, pois para lá chegar é preciso descer uma escadaria. O problema em si não é a escadaria, pois essa a avó desce e sobe com uma perna às costas, mas para a pequena Joy é que é complicado, por isso tem que ser transportada ao colo.
Normalmente, quando o jogo está a ser disputado na parte do churrasco no tabuleiro, é quando aparecem as personagens Thiago e Roberta. Por isso, é bom sinal quando os vemos estacionar o carro à porta de casa. O casal gosta de comer. A diferença é que Thiago revela-se uma majestoso conversador à mesa e Roberta não dura desperta 5 segundos depois do início da digestão. O casal espera um bebé e este já rouba uma boa dose da energia de Roberta. Peixe, carne, salsicha fresca e tomate seco, tudo vem para a mesa e é comido prontamente. Pela noite, sem apetite para um jantar contundente, Raphael e Paulinho levam-nos pelas ruelas da favela do Rio das Pedras, em busca do maior e melhor açaí do país. Quando regressamos a casa somos sempre bem recebidos pelo Cao, um cão que tem medo da sua própria sombra, e se eventualmente ele já se estava a sentir mais confiante nos últimos tempos, a Levi tratou de retroceder-lhe o processo um bom par de anos. Mas o Cao não é o único que ronda pela casa à noite - não que ele realmente ronde, é demasiado escuro para isso (por isso mesmo a avó Zika deixa-lhe uma luzinha acesa para lhe fazer companhia). Os gambás, os pequenos macacos e os gatos todas as noites dividem um banquete numa orgia de frango cozido que a Zika todos os dias cozinha e sobe um escadote de seis degraus para colocar em cima do muro.
Tivemos um mês entretidos neste Cluedo. Acho que conseguimos desvendar todas as personagens e, mais do que isso, cada uma teve um significado bem valioso para cada um de nós. Infelizmente, tivemos que deixar os dados de lado e cordialmente a avó Zika e o Raphael levaram-nos à casa final. Ainda guardamos a imagem duma avó durona com as lágrimas nos olhos despedindo-se de nós. Esperamos do fundo do coração, um dia voltar a este tabuleiro, agora que já percebemos as regras e, sobretudo, a velocidade do jogo!
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