15 a 17 de Junho, 2018

Bati com firmeza na janela. Lá de dentro fizeram-me sinal para a abrir. Enfiei a cabeça por entre as grades e, deixando desvendar um sorriso esperançoso, perguntei se a fronteira abriria hoje.
“No has mirado la ruta llena de camiones? Crees mismo que va a abrir hoy, chico?”
Não, não tinha visto que na estrada camiões compunham uma fila de quilómetros. Estacionados esperavam que a fronteira abrisse, só São Pedro (não o de Atacama) sabe quando. Decidimos não esperar mais. Já lá iam três dias retidos devido à acumulação de neve nos cerros. Resolvemos modificar os planos e atingir o Paraguai não pelo norte da Argentina, mas sim pela Bolívia. Entregamos o Maurício à solidão e rumamos a Ollangue.

O nevoeiro e a neve aumentavam notavelmente à medida que nos aproximávamos da fronteira, que fica a pouco mais de 4 mil metros de altitude. O dia já quase desaparecia por entre o céu encoberto e carregado, quando alcançamos a pequena vila fronteiriça abandonada no meio do nada. Ainda no lado Chileno, carimbamos passaportes, apresentamos o comprovativo de PDI, cancelamos a importação temporária do veículo e homologamos nos nossos corações um certificado de vontade oficial de voltar a este país que nos encantou.
O Chile é provavelmente o país mais mesquinha e alemão (no que toca a burocracias) da América do Sul, e a Bolívia é… simplesmente a Bolívia. Bastou-nos atravessar a linha imaginária que divide as nações e a diferença é abismal. Na oficina das “Migraciones” Boliviana (um contentor) deram-nos para a mão um papel (muito parecido aquele que vinha nos livros d’Uma Aventura para preenchermos e sermos sócios do clube de leitores) e uma caneta. Disseram-nos que podíamos preenche-lo no escritório (uma mesa carcomida pelo bicho da madeira). Na “Aduana” fizemos a importação do carro e resolvemos o “problema” da Levi. Não tínhamos “a documentação necessária para a nossa mascota”, mas a Catarina lá apresentou uns papeis aleatórios (o que interessa é que tenham carimbos, pois conferem-lhes um ar oficial) e inventou mais um par de desculpas pelo meio. O responsável, que estava longe do rigorismo chileno, não se deixou levar pela nossa lenga-lenga. No entanto, apenas advertiu-nos e deixou-nos ingressar no país.
Aninhamo-nos entre os inúmeros camiões que pernoitavam ali mesmo na fronteira. Pela manhã, quando acordamos a Patassaura estava congelada. No pára-choques e nas malas do tejadilho acumulavam-se pequenos montes de neve, os vidros pareciam que se iriam partir ao simples toque e em alguns pedaços da chapa - incluíndo dentro do carro - haviam-se formado pequenos estalactites. Ainda bem que fizemos um isolamento minimamente decente do interior.
A estrada para Uyuni é de terra e estava repleta de neve. Talvez noutro país esta seria cortada ao trânsito ou pelo menos só se poderia circular com o uso obrigatório de correntes nos pneus. Mas aqui há que arrancar “y no más”! No sopé de algumas subidas encontramos filas de camiões que não subiam devido ao gelo no chão, e numa descida deparamo-nos com um camião atravessado no meio da estrada. Devagar, mas sempre com o pé no acelerador - para não perder tracção - chegamos à cidade de Uyuni a meio da tarde. Fomos directos à oficina do Walter, um mecânico reconhecido e querido entre os viajantes. Aproveitamos os preços baixos do país para fazer a revisão dos 15 mil quilómetros.

Um homem pequeno e gordinho saiu de trás dum motor que estava no chão. Apertou-me a mão com força e um sorriso. Expliquei-lhe o que pretendia e disponibilizou-se a por mãos ao trabalho nesse preciso momento. Quando viu a nossa casa, comentou de imediato com a sua mulher e ajudante: “Es similar al del Marteen!”
O Marteen é um rapaz holandês que saiu dos Estados Unidos com o objectivo de chegar até Ushuaia numa VW T4. Ainda em Portugal, entramos em contacto com ele para lhe colocar dúvidas e incertezas. Muito pacientemente, ajudou-nos a dissipar todas as nossas angústias. Em troca prometemos pagar-lhe uma cerveja na estrada. Até hoje nunca nos cruzamos, mas no Uyuni estivemos bem perto do seu rasto. Infelizmente, a cabeça dum cilindro do motor queimou-se, obrigando-o a ficar cerca dum mês na cidade a fazer a reparação, precisamente nesta oficina. Segundo o que o Walter me explicou em primeira mão, o trabalho de soldadura não ficou bem feito e a carrinha seguiu com problemas. Apesar das dificuldades, hoje sabemos que o nosso amigo atingiu o seu destino final. Aqui fica uma vénia à persistência e coragem de quem viaja sozinho sem nunca desistir!

Mudamos o óleo e o respectivo filtro, assim como os filtros do gasóleo e do ar. Confirmamos que as pastilhas de travão - uma reparação que fizemos no Atacama - estavam bem colocadas. Entre outras pequenas coisas, acabamos com uma inspecção superficial ao carro, sem nenhum problema encontrar. Enquanto eu e o Walter perscrutávamos os orgãos ali abertos da Patassaura, outros viajantes repararam nos quilómetros escritos à mão no radiador pelo Sebastian (o mecânico argentino), indicando quando tinha sido substituída a correia de distribuição. Muito surpreendidos com a experiência de vida da nossa carrinha, soltaram um “uaaauu”, quando lhes disse que aqueles podiam acrescentar mais dez mil. Já não é a primeira vez, que outros viajantes com as suas casas rodantes mostram respeito face à quilometragem da Patassaura. Para quem sempre teve medo de errar na escolha da compra do carro, pois não só carecemos dum orçamento gordo, como de conhecimento técnico também, sentir que o nosso meio de locomoção não só está a corresponder, senão mesmo a superar as expectativas, é um alívio gigante.

Com óleo fresco a rodar nas veias fomos até ao Salar do Uyuni. Desde há muito tempo que desistimos de estar no sítio certo na altura certa, ainda mais quando há dois dias atrás nem sabíamos que íamos estar na tão aguardada Bolívia. Isto para dizer, que à entrada do Salar um pequeno pormenor saltou-nos logo à vista: o piso está espelhado! Fotograficamente é um espetáculo; na prática é uma merda. O Salar alaga-se e com a carrinha em bicos de pés temos que andar de poça em poça, escolhendo a que parece menos funda. Por sorte, a época molhada ainda estava no início, e só mesmo os primeiros quilómetros estavam inundados. Permitindo-nos assim ver as duas faces da moeda, o Salar molhado e o Salar seco.
O Salar é gigante. Uma mancha branca estende-se no chão por quilómetros e outra azul garrida acompanha-a no céu, inseparavelmente. O nosso cérebro transmite-nos a informação que estamos rodeados por neve, por isso quando tocamos o solo é sempre surpreendente o quão quente e duro este é. Obviamente é também salgado, a Levi que o diga: quase acabou com o nosso depósito de água em meia-hora! Percorremos o areal branco até à ilha Incahuasi, um pequeno monte rochoso povoado por cactos gigantescos no meio do Salar.

No dia seguinte, assistimos ao nascer do sol. Talvez nos tenhamos antecipado um pedaço e a espera revelou-se longa. Mas fazendo uma cabaninha entre os lençóis, lá resistimos ao frio ártico do amanhecer. Depois do pequeno-almoço, demos início ao primeiro círculo de conversa aberta. Ao fim de quase meio ano de viagem, fizemos um cálculo por alto e estimamos que à 4320 horas que convivemos diariamente - todos os dias - de manhã à noite - ininterruptamente - inseparavelmente. Como tal, não há cara metade que volta e meia não queira andar à estalada. Os círculos de conversa aberta basicamente são reuniões que passamos a ter todos os Domingos - seja em que circunstância for - onde conversamos sobre coisas que nos estão a incomodar, ressaltamos problemas e apontamos soluções. Nada melhor que um espaço com uma energia tão forte para iniciar esta dinâmica. O Salar, na sua estética tão surreal e peculiar, representava imageticamente na perfeição o “limbo” que queremos que estas estas horas de conversa sejam na nossa relação.
De volta à cidade, fomos até ao feira que ocupava as ruas, que ainda ontem eram transitáveis. A ideia que passa é que tudo é susceptível de ser vendido, mas que ninguém consegue vender nada, na verdade. No meio da feira há também a zona de jogos. Desde as típicas espingardas de tiro ao alvo, até a argolas que presas por um fio têm que ser introduzidas no gargalo duma Coca-Cola, roletas feitas com pedaços de latas de refrigerantes ou apostas com grãos de milho. Encostados a um poste, enquanto nos babávamos com duas maças caramelizadas, assistimos também aos leilões. Rifas são espalhadas por entre mini-multidões de todas as idades e todas igualmente loucas por ganhar prémios, como bacias gigantes, bonecos do Dragon Ball ou bolos com aspecto artificial. Provamos carne de guanaco numa vendedora de rua. Um pormenor chamou-nos a atenção. Ao contrário do que estamos habituados, a loiça não é descartável, mas sim de vidro. Ou seja, todos os copos, pratos e talheres são lavados e não vão para o lixo a cada cliente ou refeição. É algo que podemos aprender com este país preso no coração do continente sul Americano. Sempre que tivermos dúvidas qual será a opção mais económica de fazer algo, basta fazermos o exercício de recordarmos como se faz o mesmo na Bolívia. O jeito Boliviano vai ser sempre o mais barato que existe, não adiante puxarmos mais pela cabeça ou pela imaginação, eles já o fizeram por nós.
Facilmente se consegue comer por pouco mais de 1€ por pessoa. Não é difícil para o turista poupar dinheiro aqui, só tem que ser inteligente ao ponto de ir jantar com os Bolivianos ao restaurante mais local e não à falsa pizzaria italiana, onde vamos encontrar mais dois ou três da nossa raça. Aproveitamos para comer fora, uma vez que fica praticamente mais barato comer um prato do dia, do que abrir aquele pacote de massa tortellini que compramos ainda no Chile. Só não se pode pedir por muita diversidade.

O mais barato é mesmo comer frango. Em todo o “rincon” pudemos encontrar “Pollo” frito ou no forno, acompanhado por batatas fritas, arroz e massa. Sim, tudo ao mesmo tempo. Não é estranho que nos sirvam os ingredientes com a mão, assim como não é estranho que os restos da refeição ou a comida que é servida para fora, seja entornada para dentro dum saco plástico, e assim se leva. O que é estranho, sim, é que nos atendam com um sorriso.
No pouco contacto que tivemos, sentimos que o povo é mais difícil aqui. Desconfiado, não mostra muita curiosidade e tão pouco está interessado em fazer conversa connosco. No mercado, demos uma nota a uma velhota para pagar uma saco de aveia. Esta não hesitou em estender a nota no ar, semi cerrou um olho e com um ar de perita na matéria examinou o objecto minuciosamente. Por fim, raspou o alto-relevo da nota entre as unhas. Nota aprovada! Enfiou a mão no meio do peito, remexeu e sacou uma bolsa cheia de notas. Deu-nos o troco e - a pedido nosso - uma explicação de como detectar uma nota falsa.
Uma dica que sempre nos deram sobre a Bolívia foi utilizar o poder da negociação. Nós estávamos à espera dum ambiente mais parecido com as velhotas da feira de Espinho. Uma pessoa pede para que nos façam um “jeitinho” e - maior ou menor - a coisa lá é consentida. Aqui não. Mesmo que digamos com todas as palavras “Faça-me um desconto, por favor!”, arriscamo-nos a ouvir um “no”, única e simplesmente. Não foi o caso do “lavadero”. Quando se regressa do Salar é essencial lavar bem o carro para que não fiquem vestígios do sal principalmente debaixo do carro.
O Salar do Uyuni é uma experiência única, mas pode representar uma dor de cabeça. Um dos viajantes que estava no Walter, viu o alternador do seu Mitsubishi Montero ir à vida à custa do sal e da água que se infiltraram no mesmo. Aos 100 pesos iniciais, o senhor do “lavadero” acabou por me fazer um desconto para 70. Feliz pela minha conquista, agradeci-lhe dizendo:
“Gracias amigo, estamos viajando y toda la ayuda es preciosa!”
Neste momento, sorriu-me e desejou-me sorte. Ganhei um desconto e um sorriso, ao mesmo tempo! O primeiro é precioso, sim - mas estamos a falar de 2€ - já o segundo não tem preço!
Comments