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admirável Novo Mundo de Yacaranta

Foto do escritor: PéterPéter


Saímos do Rio já de noite. Pusemos Maria Bethania nas colunas para nos despedirmos não só da cidade, mas de todas as emoções que foram ao nosso encontro durante o mês que aí estivemos. Páramos em Petropólis pelo caminho. Aquela que parecia ser uma pequena cidade universitária, estava cheia de jovens na rua bebendo e conversando. Procuramos um lugar para jantar e encontramos o mais barato possível. Comemos apenas para saciar a fome e fomos dormir.


No dia seguinte, preparamos o pequeno almoço, estacionados na praça em frente ao museu de Santos Dumont. Como se tornou habitual, a porta aberta da nossa casa, tornou-se uma desculpa para toda a gente se aproximar, ora perguntando se estávamos a vender comida, ora para saber quem nós éramos e por onde andávamos a viajar. Já repetimos mil e uma vezes a nossa biografia recente. “Somos portugueses”; “O carro chegou de barco..sim, é possível fazer isso.”; “Não, não chegou no Brasil, mas sim em Montevideo, no Uruguay.”; “Não, não viemos do Uruguay para o Brasil, mas fomos primeiro à Argentina, ao Chile e ao Paraguay…”; “Não tem raça a cachorra…”; “É adoptada, mas veio de Portugal connosco.”; etc etc. É engraçado, pois por mais que a história supostamente seja sempre a mesma, acabamos por encontrar sempre novos detalhes, seja na forma de a contar, seja por algo de novo ter acontecido ou por alguma coisa ter mudado na forma como percepcionamos o nosso caminho até aqui. Depois do café da manhã, fizemos uma visita de médico pela cidade e partimos.


Chegamos em Belo Horizonte, a cidade berço duma banda que conhecemos em Lisboa, chamada Graveola e o Lixo Polifónico. Aproveitamos a paragem na capital de Minas Gerais para prolongar o visto por mais três meses. Foi um processo bastante fácil e relativamente rápido. Contudo, para nossa surpresa, ao longo do resto do Brasil iríamos conhecer muitos outros viajantes que tentaram fazer o mesmo e não conseguiram. Talvez tenhamos tido uma grande sorte, pois estávamos a contar fazer este processo desde o início e tínhamos planeado a nossa visita a contar com essa extensão do visto.



A poucos quilómetros da capital mineira fica uma vilarejo chamado Betim, essa era a localização do nosso novo voluntariado. Desta vez, apenas por uma semana. Fomos recebidos pelo João, a cargo do projecto, e o Pedro um outro voluntário. O Novo Mundo de Yacarantã, como o próprio João nos contou, já teve muitas intenções e é um projecto que sempre se foi moldando a diferentes necessidades com a passagem do tempo. O João é uma inspiração de pessoa, tem uma energia que nunca mais acabava e, pelos vistos, o seu conhecimento agrónomo não é muito diferente. Em cerca de cinco anos, levantou uma agrofloresta bonita e produtiva, na verdade a única onde tivemos, que realmente já tinha chegado à fase de floresta. Muitos meses mais tarde, na chapada dos Veadeiros, iríamos por coincidência conhecer um rapaz que é amigo do João há já alguns anos. Contou-nos que enquanto viajante, o João cuidava de todos os espaços por onde passava. Mesmo que acampasse apenas um dia num jardim, ele arrumava um jeito de limpar e plantar algo no espaço. Foi exactamente essa a impressão com que ficamos dele, a de ser um cuidador.

Chegamos num Sábado e dois dias depois o João e o Pedro foram embora. Deixaram-nos indicações e tarefas para realizar durante a semana. Assim, passamos a semana sozinhos, gerindo o nosso próprio tempo e entregando-nos ao trabalho de livre e espontânea vontade. A manhã era dedicada à agrofloresta, podando e colhendo. No resto do terreno, também era necessário colher acerola e amoras sobretudo. Almoçávamos contundentemente, apenas com verduras que trazíamos da plantação. À tarde, o tempo repartia-se na leitura e na escrita. Deitados na cama de rede ou no sofá, aproveitando sempre o esplêndido alpendre da casa, cuja luz e sol convidavam a ficar até à noite chegar. Tivemos ainda tempo para um momento que, apesar de tudo, ficou mais guardado na memória como cómico do que trágico.


Uma manhã estava a cortar capim, junto à zona da plantação de mandiocas, como me tinha sido pedido. Com uma mão agarrava o capim, formando um maço de ervas na mão. De seguida, com um facão cortava o maço junto à raíz, ficando duma só vez com todas as ervas daninhas na mão. Numa das vezes, o golpe com o facão não foi suficiente para desprender todas as ervas do solo, ficando apenas algumas ainda presas ao solo. Em vez de golpear novamente com o facão, decidi puxar o maço na minha direcção. Acabei por fazer mais força do que esperava, e o meu pulso saiu disparado para o ar, acertando em cheio no facão que segurava com a outra mão, apontando-o para o céu. Resultado, abri um grande corte no pulso. Como se não bastasse, perfurei a veia principal. O que era um retrato perfeito da Elis Regina, sobre uma casa no campo e todo o romantismo inerente, transformou-se rapidamente num filme do Tarantino. O sangue começou a jurar do meu pulso, como uma mangueira furada, onde se tenta tapar o furo com o dedo, mas a pressão da água faz com que o jacto saia de qualquer forma. Enquanto a Catarina foi procurar um vizinho para perguntar qual o hospital mais perto, eu fiquei sentado no chão da cozinha na companhia da Levi, cujo choro e alarmismo - tentando me lamber - me fazia pensar que esta estava a pressentir a minha morte e, por consequência, estes eram os meus frames finais! A Catarina acabou por voltar com novidades. Sentou-se ao volante e levou-nos a uma clinica que felizmente ficava perto. Depois de me limparem todo o espetáculo sanguinário do braço, dava para perceber que o corte em si não era assim tão feio. Levei três pontos e uma recomendação de descanso. O meu pulso inchou como o tornozelo das velhas, e afinal não tinha chegado o momento do meu juízo final.



No fim de semana seguinte, decorreu um curso de GAIA Education em Yacarantã. Estivemos de serviço dando apoio à cozinha. Ainda conseguimos aprender um pouco, ouvindo a palestra à distância. Foram dois dias agitados, de troca de conhecimentos e experiências. Conhecemos um rapaz, que por meio ano viveu na famosa ecovila Tamera, em Portugal. Apesar de já termos feito uma visita bastante superficial à Tamera, foi através da sua experiência em primeira mão, que ficamos a conhecer melhor aquela que é provavelmente uma das ecovilas com maior dimensão no mundo. Não é a primeira vez que algum conhecimento referente ao nosso país nos chega por pessoas de fora. Falando de educação, parece que as pessoas aqui no Brasil têm como grande referência e conhecem muito bem o trabalho do Pacheco e da escola da Ponte, que fica em Vila do Conde. Já em Portugal, tenho a ideia, que se for preciso, numa conversa sobre educação fala-se muito mais depressa do Paulo Freire, um pedagogo brasileiro. É interessante porque de alguma forma, estes acontecimentos vêm confirmar algo que já suspeitávamos. Neste momento, conhecemos muito mais o movimento permacultural na América Latina do que no nosso próprio país. Por curiosidade, a Catarina pesquisou na plataforma de voluntariado Workaway, quantas opções existem em Portugal e encontrou ao todo 930. Nem todas são em volta de permacultura, mas uma grande parte sim. Assim, parece que quando voltarmos, de alguma forma, a nossa viagem vai continuar por lá.

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