Chegámos à fronteira cedo como gostamos de fazer. Sempre com o cão escondido por baixo de panos (literalmente), ainda do lado brasileiro tratámos da burocracia necessária. Esta é uma fronteira que fica onde Judas perdeu as botas, como tal na sala vazia, o som do carimbo ecoou como se fora o martelo dum juiz no tribunal. Pela primeira vez, o prazo de estadia limitado pelos vistos jogou a nosso favor. Caso, não houvesse limite de tempo, penso que ainda hoje em dia andaríamos às voltas pelo Brasil e não conheceríamos o resto da América do Sul.
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“Boa sorte na Bolívia, aquilo é outra dimensão”. Disse-nos um dos militares antes de arrancarmos. Assim como o som do carimbo, aquelas palavras ecoaram na minha cabeça. Com má, boa ou intenção nenhuma, a verdade é que as pessoas tentam contagiar-nos com a cultura do medo. Não desfazendo quem se cruza connosco e demonstra a sua preocupação pela nossa segurança, se fossemos dar ouvidos a cada cidadão com o seu concelho vital, nunca teríamos saído de dentro do carro talvez a ideia de morte ao virar da esquina que as pessoas insistem em propagar. Lembro-me de no Brasil, alguém nos dizer, cuidado com a Bolívia! Os pequenos pueblos do interior do país são muito perigosos, não é como o Brasil. As próximas aventuras que vamos relatar não podiam ser o maior comprovativo de que (ainda que sem má intenção) muita gente não só não tem noção do que diz, como não tem noção de que o que diz afecta - ou melhor infecta - quem os ouve.
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À velocidade de caracol, lá fomos avançando os 300km de estrada de terra que levavam até San Ignácio, a vila maior mais próxima. À entrada ou saída de cada pueblo, estão os típicos controles militares bolivianos. Há que levar a documentação toda e 10 bolivianos no bolso, caso a coisa dê para o torto. Eu diria, estabelecendo uma comparação entre os dois países vizinhos que nada têm a ver um com o outro, que a ideia geral de corrupção militar na Bolívia é equivalente à ideia geral de violência por todo o Brasil. Ambos são fantasmas cuja sensação da sua existência nos atormentam sempre um pouco. Claro, que do nada pudemos estar expostos a situações desagradáveis e perigosas, que essas realidades provocam. Mas não é como se em todo o lado e a cada momento isso fosse acontecer.
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Contudo, e recuperando o que dizia em cima, esses fantasmas, mais que nada, são alimentadas pelas pessoas que, duma forma geral, insistem em reforçar e dar valor às premonições e ideias negativas, acabando muitas vezes por falarem sem experiência nem conhecimento nenhum. É importante alimentar a perspectiva positiva, o que não significa ignorar os problemas ao nosso redor. É uma questão de escolha. O que preferimos valorizar? O lado negativo e, eventualmente viver e contagiar o medo? Ou o lado positivo, e viver e contagiar os aspectos bons de o quer que seja? Ao fim de mais de um ano de viagem, até hoje nada de grave nos sucedeu. Acredito que tivemos sorte. Mas acredito igualmente que em parte a sorte atraí-se, e não é com o foco nos pensamentos negativos, de certeza absoluta.
E, claro, admito que o facto de viajarmos com um cão de um porte respeitável, ajuda a desencorajar causadores de problemas.
A primeira noite foi passada em San Vicente de la Frontera, um pequeno pueblo duma rua só. Exaustos e sem gás para cozinhar, dirigido-nos à última vendedora de rua que ainda ali estava. Esta é uma dinâmica que nós apreciamos na Bolívia. Uma senhora instala uma mesa no meio da rua, coloca alguns bancos, mantém a comida (já cozinhada) quente em tachos e as opções de pratos são duas, senão uma só mesmo. Pedimos o que queremos ou o que há, e comemos ali sentados de frente para a vendedora do outro lado mesa. Muitas vezes a comida é servida em pratos envolvidos em sacos plásticos. Desta forma, nunca se suja o prato. Deita-se fora o plástico e troca-se por outro. Mesmo quando pedimos para levar take away ou se nos sobra comida do restaurante e desejámos levar para casa, a comida é quase sempre posta dentro de sacos plásticos. Mesmo que sejam líquidos, como água ou sumos. Estes também são vendidos em sacos plásticos. Definitivamente, hoje achamos que este aspecto peculiar boliviano é, de facto, um problema. Saco após saco, o desperdício e a poluição é imensa. Para agravar, da mesma forma que (generalizando) a população não é muito consciente da sua pegada ecológica, também não é de igual forma consciente em relação à finalidade do lixo que ela própria origina. A Bolívia é um país lindíssimo, mas mais bonito seria se os montes de lixo espalhados pelo chão não fizessem parte integrante de quase todas as paisagens.
Voltando ao jantar, as filhas da vendera acabaram por chegar e se sentarem connosco. Pouco depois, chegou também o último cliente da noite, um cliente habitual, chamado Don Jorge. Apesar de morar em San ignácio, Don Jorge viaja muito pela região, pois trabalha na instalar e manutenção da rede eléctrica. Começamos uma conversa agradável, explicámos quem éramos, donde éramos e para onde íamos, como tantas vezes fazemos, mas há sempre algo novo para (re)contar. Pela nossa experiência anterior na Bolívia (meses antes) tínhamos ficado com a impressão de que as pessoas não eram muito abertas. E, de facto, na região do Altiplano onde a Natureza e vida são duras de roer, a população tende-se a mostrar um pouco mais bruta e desconfiada. Mas aqui, no lado oriental do país, a atitude das pessoas é completamente diferente. Demonstram mais abertura e curiosidade, criam empatia e são simpáticas e disponíveis. Claro que isto são generalizações, o que encontrámos mais pelo país adentro foram pessoas amáveis.
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Tudo isto para contar que num acto de ajuda e solidariedade, Don Jorge resolveu comprar todo o nosso pequeno stock de colares e pulseiras de macramé. Claro que lhe fizemos um bom desconto também! Na manhã seguinte, encontramos de novo Don Jorge no café da vila. Juntamo-nos a ele para tomar o pequeno-almoço. Ao seu pescoço trazia um dos nossos colares! Consigo estava também o dono do próprio café, e juntos falaram-nos um pouco do seus país, do seu povo e da sua história.
De novo na estrada, a cerca de uma hora de distância de San Ignácio, demos boleia a um rapaz que estava na berma da estrada. O seu nome era Ricardo. Explicou-nos que trabalhava numa fazenda alimentando porcos, nessa manhã chateara-se com o patrão estrangeiro e antes que acabasse em pancada, decidiu sair mais cedo do trabalho. Pelo caminho, falou-nos de La Paz e os seus teleféricos, do bolso de coca (como o gigante que trazia na sua boca) que serve para dar energia e enganar a fome e dos mais variados pratos típicos bolivianos que nós tínhamos que experimentar, como o chicharron, o assado (diferente do churrasco Argentino e Uruguaio), a trucha e o lagarto frito típico de San Ignácio. Ao longo da nossa estadia no país, viríamos a provar todos estes pratos (incluíndo o lagarto), pois continuaríamos por algum tempo mais sem forma de cozinhar em casa e por ser tão barato comer fora. Infelizmente, toda a comida é demasiado frita e encharcada em óleo para o nosso gosto e, se uma vez por outra sabe bem, comer continuamente este tipo de gastronomia torna-se um pouco enjoativo e frustrante.
Por outro lado, a cultura da bebida na Bolívia é muito boa, e a cada refeição podemos beber um bom sumo de linhaça, papaia ou um api quentinho, por exemplo. Outra bebida típica é a chicha de mais (milho seco), muitas vezes também misturada com amendoim. Como sinal de agradecimento, quando deixámos o Ricardo em casa, este ofereceu-nos um litro de chicha feito artesanalmente pela sua própria família. Estava fresca e deliciosa, não voltaríamos a beber outra tão gostosa até ao fim da visita ao país.
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